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Professor, profissão de futuro

“Ser professor é viver uma vida dedicada a uma missão quase impossível”, escreveu Eggleston. Talvez seja, mas, como afirmou a Fenprof, na sua primeira campanha de promoção da imagem social dos professores, a profissão de professor continua a ser uma profissão de futuro, ainda que uma das marcas mais dramáticas do nosso presente seja, precisamente, uma enorme falta de confiança no futuro.

A acção dos professores desenvolve-se, hoje, num quadro de pressões variadas e responsabilidades acrescidas. “Exige-se-lhes que estimulem os alunos mais rápidos, sigam aqueles que trabalham lentamente, velem pela atmosfera da aula, programem as suas actividades, avaliem, aconselhem, recebam os pais e conversem com eles sobre a evolução dos seus filhos, organizem actividades extraescolares, participem nos conselhos de professores e de turma, nas reuniões, se ocupem por vezes de problemas administrativos e até vigiem os recreios, os refeitórios ou os transportes escolares” (José Manuel Esteve e Alice Fracchia, 1988).

Hoje ainda é assim, e no futuro a situação não tende a simplificar-se. Pelo contrário, é expectável a sua complexificação. Com distâncias que não se limitam às temporais, os desafios que se colocaram aos professores durante a Primeira República também foram exigentes, embora diferentes. Nos meios mais progressistas, a Educação era um aspecto central, por se considerar que só uma população culta e instruída poderia aderir ao programa revolucionário republicano e que a instrução era a forma adequada de criar uma verdadeira consciência cívica.

Também por entenderem que “o Homem vale sobretudo pela educação que possui”, decidiram investir na Educação, tomando medidas concretas, de onde avultam a criação do ensino infantil, a obrigatoriedade e gratuitidade do Ensino Primário Elementar e a criação dos níveis Complementar e Superior deste sector de ensino. Construíram-se novas escolas, quer primárias, quer técnicas, e obteve-se um aumento da frequência do Ensino Secundário, com um significativo reflexo no acesso de raparigas. Aumentaram as bolsas de estudo para apoio às famílias e criaram-se novas universidades.

O investimento no factor humano, em particular nos professores e na sua formação, também não foi esquecido, sendo fundadas escolas normais para formar professores para o Ensino Primário e escolas normais superiores destinadas à promoção da “alta cultura pedagógica” e que habilitavam para o magistério dos liceus, das escolas normais e das escolas primárias superiores. Desafio maior para os republicanos era o combate ao analfabetismo, que atingia uma taxa de 75,1% em 1911. Era, então, tempo de massificar, num contexto sinónimo de democratizar. O debate chegou a dividir-se entre o encerramento das escolas para além das primárias, centrando todo o esforço na alfabetização, e os que entendiam que esse combate não impedia a promoção de níveis mais elevados de escolarização.

A democratização que tinha lugar não desvalorizava questões importantes como a disciplina, aspecto importante para o reforço da autoridade pedagógica e cívica dos professores. Eram emitidas recomendações aos professores, por decreto, que visavam a manutenção da disciplina nas aulas através da utilização de métodos como o desenvolvimento de relações paternais e convivência assídua com os alunos, participação nas suas associações e iniciativas, entre outras. Recomendações que, no entanto, segundo alguns autores, correspondem a uma intervenção do poder central reveladora do grau de dependência em que os estabelecimentos pedagógicos se encontravam relativamente às autoridades políticas – bem como, atrevo-me a acrescentar, os profissionais docentes.

Num quadro político e social como o que então se vivia, com sucessivas mudanças de elencos governamentais e, por consequência, de ministros no sector educativo – 47, em apenas 13 anos (1913-1926) –, com reformas ou medidas que se sucediam e, algumas vezes, se atropelavam, apesar do esforço e da decisão política, muitas das reformas não se concretizaram, não surtiram os efeitos desejados e o próprio combate ao analfabetismo obteve resultados que ficaram muito aquém dos esperados, pois em 1920 a taxa de analfabetismo não tinha baixado dos 70%.

Nesse período, no que concerne aos professores, houve, como atrás referi, uma evolução positiva no plano da formação, sendo natural que tal se reflectisse num progressivo reforço da sua competência e autoridade pedagógicas e na melhoria do seu desempenho profissional. Os tempos que corriam, no entanto, continuavam a ser de grande agitação social e, apesar das suas preocupações no plano da inter intervenção pedagógica, os professores, por não serem alheios ao que acontecia fora da Escola, procuravam assumir as responsabilidades sociais que o processo revolucionário em curso lhes exigia.

Exemplo disso deram-no os professores do Ensino Primário que se uniram em torno da União do Professorado Primário Oficial Português, que representava cerca de 80% dos professores existentes. Estes abraçavam inequivocamente os ideais republicanos, acreditando na Educação como factor determinante da mudança e do progresso social, tendo uma elevada consciência da importância do seu papel na sociedade e, até, da sua influência política, que exerciam através de uma forte presença na imprensa.

Por outro lado, adoptando uma postura mais elitista, os professores do Ensino Liceal oficial, apesar de um período em que procuraram a aproximação e unificação com outros docentes – primeiro em 1911, abrindo a sua associação aos não efectivos e aos docentes das escolas de ensino profissional e técnico, e mais tarde, em 1913, tentando criar uma grande associação representativa do professorado –, goraram-se as tentativas de criar um movimento associativo abrangente e, no quadro da elevada instabilidade que se vivia, com grande facilidade despontaram ou aprofundaram-se desconfianças recíprocas entre professores dos diversos sectores.

A desejada unificação acabou por não se concretizar, estendendo-se essa divisão, de novo, às diferentes categorias dentro do próprio Ensino Liceal. A elitização voltou a marcar o associativismo docente, apesar de algumas excepções que aqui e além procuravam afirmar-se, sendo considerado que os interesses dos efectivos do sector eram diferentes e, por vezes, contrários aos dos restantes professores, de outras categorias e outros sectores.

Não obstante este clima de divisão orgânica, o conjunto dos professores procurava defender os seus interesses sociais e profissionais, ao mesmo tempo que pugnava por um quadro de autonomia em que a profissão deveria ser exercida. Isto é, apesar das divergências, divisões e mesmo diferenças no plano da intervenção pedagógica, e cívica, podia encontrar-se já uma procura de referências que contribuíssem para a construção de uma identidade profissional.

“Na procura de uma legitimação e dignificação social e profissional da docência, o discurso dos porta-vozes associativos dos professores recorre, por um lado, às novas referências que remetem para o entendimento da actividade como profissão, pondo em destaque a importante missão social de que estaria investida, os fundamentos éticos do exercício, o carácter especializado do mesmo, o rigor e a longa duração da formação e a desejável autonomia dos profissionais que os aproxima, assim, da figura do intelectual, ao mesmo tempo que o afasta da figura do funcionário”. (Joaquim Pintassilgo).

A forma como os professores procuravam definir traços de identidade profissional estava patente no modo como reconheciam e atribuíam virtudes aos que consideravam os melhores, os seus melhores exemplos. No elogio fúnebre de Urbano de Castro a Agostinho de Carvalho, professor da Escola Primária Superior de Rodrigues Sampaio, tais virtudes estavam presentes: “o saber, o método, a bondade e a honestidade”.

Como afirma Pintassilgo, “esta lista é muito significativa, por articular conhecimento científico, conhecimento pedagógico e qualidade humana, tanto no que diz respeito à interioridade da pessoa, como à sua dimensão mais relacional. No que diz respeito à sua competência profissional, destaca-se, para além da sua vasta erudição, o facto de ela incorporar um saber de experiência feito, o que dá vasta importância à prática docente e às suas virtualidades formativas. No que se refere ao método, elogiam-se as suas faculdades de dicção. Mas, em consonância com as considerações anteriormente feitas sobre a noção de profissão prevalecente na classe, a componente mais valorizada da figura do homenageado é a que se refere ao seu perfil pessoal e moral e à sua irradiação, em particular junto dos seus alunos. Para além das já referenciadas, são-lhe apontadas outras virtudes, como o carinho, doçura, sinceridade, ponderação, sensatez, justiça ou bondade” [O associativismo docente do ensino liceal português, Revista Lusófona de Educação nº 12, 1988].

Dir-se-ia, em jeito de síntese, que, durante a Primeira República, os professores souberam assumir as suas responsabilidades, numa procura constante e numa construção permanente, apenas interrompidas com a instauração da ditadura, que, com a publicação de um decreto, em 1933, dissolveu o Sindicato dos Professores Primários e a Associação do Magistério Secundário. Em 1937 foi encerrada a Sociedade de Estudos Pedagógicos e em 1946 são fechadas a Sociedade de Matemática e a Sociedade de Escritores.

Este comportamento repressivo foi acompanhado de uma clara desvalorização da função docente, nomeadamente através de um premeditado abaixamento do nível da formação de professores e a interrupção do caminho de democratização que se percorria. A ditadura fascista promoveu a elitização da Escola, sobretudo no que respeita ao acesso ao Ensino Liceal e ao Ensino Superior, procurou reduzir os docentes a meros funcionários ao serviço do regime e atribuiu à Escola um papel de veículo dos valores, da ética e da moral salazaristas.

Mas os professores continuariam a resistir, e em 1972/73 surgiu um dos mais consistentes movimentos de resistência e exigência – os Grupos de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário, que culminaram anos de iniciativas e acção, com expressão mais notória em 1969 e em 1971, através de significativas movimentações regionais. Com o Despacho 9/74, o regime tentou eliminar os GEPDES, mas, apesar disso, Fevereiro e Março desse ano foram fortíssimos em acção. E Abril desfez-se em liberdade.

Se tivermos em conta, e devemos ter, o que afirma Isabel Batista em «Dar o rosto ao futuro: a educação como compromisso ético» [ProfEdições, 2005], o passado deverá constituir um património de referência para a construção do futuro. Diz-nos ele que “o docente tem como tarefa fazer uso do passado de modo a nutrir o presente e a dar rosto ao futuro de forma pessoal, comunitária e global, como participante e moderador, tendo em conta a liberdade, normas, regras, acção solidária, hospitalidade, civismo e tolerância, como considerações implícitas e imprescindíveis da vida em comum”.

É precisamente visando reforçar a ideia de a profissão de professor ser uma profissão de futuro que, na declaração que tem por objectivo orientar os professores e outros trabalhadores da educação, bem como os seus sindicatos, para o respeito pelos padrões éticos requeridos pela profissão, a Internacional da Educação estabeleceu um conjunto de compromissos que os docentes deverão assumir.

Mas a tais compromissos, para que possam ser cumpridos, deverão associar-se boas condições de trabalho, o apoio da comunidade e políticas capazes de proporcionar uma Educação de qualidade. Ao mesmo tempo, afirma-se ainda no documento, só uma crescente consciencialização das normas e da ética da profissão podem contribuir para aumentar a satisfação profissional dos professores e potenciar o seu prestígio e auto-estima, aumentando o respeito que a sociedade sente por estes profissionais.

É também para este papel de consciencialização que o movimento sindical docente representativo, corporizado na Fenprof e nos seus sindicatos, deverá continuar a contribuir. Contrariamente ao que, por vezes, afirmam os detentores do poder e alguma opinião publicada subserviente, na Educação e nas escolas não há Sindicato a mais. É curioso como alguns dos que, antes, acusavam a Fenprof de se reduzir a intervenções no restrito âmbito socioprofissional – o que nunca foi verdadeiro – são os que agora afirmam esse excesso de intervenção sindical, tendo mesmo imposto, pela via administrativa e na sequência de decisão política, fortes constrangimentos ao exercício da actividade sindical.

A sustentar e reforçar a ideia de que é de importância crucial os professores intervirem e fazerem-se ouvir mais, recorro a António Nóvoa: “Se quisermos criar uma melhor credibilidade profissional, temos que aprender a ter uma voz e uma intervenção pública mais forte, mais crítica, mais decisiva em função da educação.

Creio que é essa voz que nos permite em parte ganhar esse espaço público na educação. Ganhar essa dimensão do apoio da sociedade ao trabalho da escola. É preciso ganhar a confiança da sociedade para o nosso trabalho, ganhar maior credibilidade pública. É preciso conquistar a sociedade para o nosso trabalho”. Essa voz será sempre a voz organizada dos professores, que a Fenprof continuará a assumir com orgulho. Mas terá de ser, igualmente, a voz de cada um de nós, professor e professora, educador e educadora, no nosso dia-a-dia nas escolas.

Sem pôr em causa essa insubstituível intervenção individual, o tempo que vivemos, contudo, apela a uma grande unidade entre todos os trabalhadores face ao violentíssimo ataque que está a ser desferido pelo actual Governo do PS, apoiado, embora de forma não explícita, pelos partidos à sua direita, pelo actual Presidente da República e por Durão Barroso. Um ataque dirigido aos trabalhadores, logo também aos professores; um ataque aos serviços públicos, logo também à Escola Pública; um violento ataque ao Estado social e à própria democracia. Porque não é democrática uma sociedade em que, para alguns ganharem muito, outros são excluídos, caem nas teias da pobreza, são violentamente atingidos nos seus direitos e na sua dignidade; não é democrática uma sociedade em que uns poucos se enchem à custa da miséria de quase todos.

Os que desenvolvem estas políticas contarão com a nossa forte oposição e resistência e com uma luta determinada de todos os trabalhadores. E nós, professores, temos de complementar essa luta geral voltando à rua para continuarmos a defender a Escola Pública – que com as políticas do Governo e as ameaças da direita corre realmente sérios riscos – e para voltarmos a exigir: Deixem-nos ser professores!

Mário Nogueira


  
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