O som forte do tambor dá início à confeção da massa pasteleira e à aplicação de solas em sapatos... Vozes sussurram palavras que se misturam com sons e ritmos do martelo a calcetar... É assim Experimentum Mundi, ópera com música imaginística que o maestro italiano Giorgio Battistelli apresentou em março na Casa da Música, onde é Artista em Associação 2013.
A obra – que já teve mais de 400 apresentações em todo o mundo – aproveita os sons do trabalho manual, homenageando artes e ofícios que tendem a ser esquecidos ou desvalorizados: um pasteleiro, dois calceteiros, um pedreiro, dois carpinteiros, dois trolhas, dois amoladores, dois ferreiros, dois sapateiros e dois tanoeiros deram corpo a uma orquestra muito particular, surgida no âmbito do Serviço Educativo da CM, que enquadrava um ator, dez vozes femininas e um percussionista.
“Penso que é um modo de fazer reviver aquelas profissões”, disse Giorgio Battistelli à PÁGINA. “Num palco cénico, eles transformam o que fazem, experimentam e transformam o mundo através das matérias em que tocam. São mãos cheias de calos, que trabalham a pedra, o ferro, a madeira. São pessoas muito sábias”.
Todos os instrumentos de trabalho “têm uma dinâmica rítmica interessante”, considera o maestro. “O pasteleiro, o calceteiro, os tanoeiros, os pedreiros… fazem sons muito interessantes. Para mim, são como uma orquestra”.
Das ruas para o palco. E se Battistelli contou sempre com um grupo de trabalho definido, na CM começou do zero, com artesãos locais recrutados em colaboração com várias instituições da cidade.
Dificilmente algum deles imaginava que um dia ia pisar um palco para interpretar uma obra com as suas ferramentas. Durante o trabalho diário, na rua, surgem melodias que se confundem com os assobios, o martelo ou a lixa marcam o compasso, mas nada como o que viveram na CM. “Quando me falaram disto, pensei que era para calcetar alguma coisa lá fora. Mas quando disseram que era para fazer uma música achei um pouco estranho”, conta José Carlos Pereira, que entre outras coisas é calceteiro.
Outra atividade cada vez mais rara nas ruas das cidades é a de amolador. Por isso, Manuel Ferreira gostou da ópera e espera que “fique gravada na memória de todo o público”. Amolador há mais de 40 anos, só fazia música “a brincar”, enquanto “afiava a faca para o freguês”, e “nunca à frente de um maestro”. Ficou satisfeito com a experiência, tal como Battistelli: “Estou muito contente, também, porque foi a primeira vez que estes artesãos entraram na Casa da Música. E logo no palco”.
“A Casa da Música é uma referência europeia. Aqui há um passar contínuo de pessoas para ouvir vários estilos, da barroca à contemporânea, sinfónica, coral... É uma verdadeira casa da música”, considera Giorgio Battistelli.
PÁGINA/Maria João Leite
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