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O MEM aspira a ser uma plataforma da aprendizagem dialogada

Pascal Paulus é o presidente do Movimento da Escola Moderna (MEM). Natural de Oostende (Bélgica), foi professor do ensino primário e na educação de adultos. Radicado em Portugal desde meados dos anos 1980, tem alternado a docência no 1º Ciclo com a formação de professores e a intervenção em projetos de desenvolvimento local. Crítico da escola castradora, Pascal Paulus defende uma intervenção educativa em que a construção de sentido permita às crianças aprenderem mais e melhor.

 

O que carateriza o MEM e o distingue de outras associações de professores?

O Movimento da Escola Moderna tem a sua especificidade. O que o carateriza é, certamente, a abrangência: reúne educadores, professores e outros profissionais ligados à educação, ao ensino, à formação. Há sócios da Educação Pré-Escolar, desde a creche ao jardim de infância; outros, de todas as disciplinas, que trabalham nos ensinos Básico e Secundário; e também há os que trabalham com adultos, em escolas superiores ou universidades. Entre todos, discutem a sua ação na profissão, refletem acerca dela e teorizam a sua prática, contribuindo para a explicitação de uma gramática escolar, ou da escolarização, que se quer descritiva e não normativa. Essa interação tem tornado possível implementar um modo de trabalhar diferente do que está largamente instalado nos sistemas de ensino e que continua a basear-se no paradigma da instrução. Os sócios do MEM têm aperfeiçoado continuamente um modelo de trabalho que tem o paradigma educacional da comunicação como plataforma; um modelo que elege os projetos de trabalho como motor para a apropriação do conhecimento por quem aprende, seja qual for a sua idade. Este modo de trabalhar baseia-se na interação e no diálogo constante entre todos os participantes que se encontram no espaço-tempo específico que é o grupo-turma; esta interação constante garante a explicitação necessária para o processo de aprendizagem, que é do grupo, mas também de cada um no grupo. A própria estrutura da associação adapta-se à necessidade de os sócios discutirem a sua profissão. É ela a plataforma que sustenta o diálogo e a interação. Muitos conhecem os congressos anuais, onde os sócios colocam o seu trabalho em debate; também são conhecidos os ciclos de apresentação e debate identificados como Sábados Pedagógicos nos 14 núcleos locais – estas atividades são abertas a todos os profissionais da educação, sócios ou não do MEM. O que talvez seja menos conhecido é que os sócios se organizam em pequenos grupos de trabalho cooperativo, de autoformação em cooperação, escolhendo entre eles o objeto de estudo que querem aprofundar. Estes grupos são absolutamente necessários para fazer avançar o pensamento pedagógico no MEM.

 

Cinquenta anos depois da sua criação, o MEM continua a fazer sentido?

Diferentemente do paradigma instrucional, que é autocrático, o modelo de trabalho dialogado da aprendizagem obriga à existência de plataformas democráticas que o atualizem. Uma plataforma deste tipo faz evoluir a ação e o pensamento acerca da prática pedagógica que propulsiona a aprendizagem de todos e de cada um e exige a discussão alargada entre pares. A meu ver, o MEM aspirou e aspira ser uma plataforma desse género: porque possibilita o encontro entre pares, trabalhando em contextos diversos, dentro e fora do jardim de infância, dentro e fora da escola obrigatória, dentro e fora do politécnico ou da universidade, sem fronteiras entre graus de ensino ou disciplinas. Por isso, o MEM tem razão de ser. Por isso, se encontra nele um sentido, da construção de uma proposta pedagógica de interação dialogada – a proposta de trabalho dos profissionais do MEM é co-construída e está em constante atualização. É o sentido, também, de um profissional da educação que procura outro para discutir a construção da profissão. Enquanto houver dois profissionais a discutir esta proposta de trabalho pedagógico com o objetivo de a fazer evoluir, o MEM continua a fazer sentido.

 

As chamadas ‘técnicas Freinet’ ainda são utilizadas pelos professores do MEM?

Penso que existe algum equívoco em relação à expressão técnicas Freinet. A escola da transposição didática tem alguma dificuldade em perceber que quando se fala de um modo de trabalhar, não se está a falar de estratégias, de métodos ou de técnicas. Agora, na prática dos educadores e professores do MEM, onde o diálogo é muito importante, a escrita, a publicação de textos e de produções de grupo, o encontro com os outros através da correspondência e das saídas para o exterior, são aspetos importantes. Penso que não se trata da aplicação de uma técnica, mas de um modo de funcionar. Michel Lobrot, que em França fez parte do grupo da Pedagogia Institucional, diz que os instrumentos de trabalho que a Escola Nova e depois Célestin Freinet (com a escola para o povo) introduziram podem ter sido importantes, mas que o cerne da questão não está aí. Quando se fala da escola, tem de se falar de relação autoritária, de poder – esta relação de alienação, disse ele, tem de ser terminada, o que só pode ocorrer na base, na relação professor-aluno. Lobrot propõe uma outra relação, de autoria e de autoridade: autoria que decorre do projeto de trabalho do grupo; autoridade que decorre do que se produz em conjunto e onde o contributo de cada um é validado. Com Freinet, o Movimento da Escola Moderna percebeu como se organizar enquanto associação de professores para discutir a profissão. Como lembra Sérgio Niza, é nisso que o Freinet se destaca: foi o primeiro a juntar professores para formar um movimento pedagógico, um movimento de base para discutir a profissão. Mas desde o fim dos anos 60 e nos anos 70, ainda muito no início do MEM, o contributo dos institucionalistas franceses foi importante: tratava-se de trabalhar a relação, de entender o órgão de regulação – o conselho. Hoje, entre nós, identificamo-lo como Conselho de Cooperação Educativa, que institui e regula o grupo, projetando e avaliando o seu trabalho. Ao ler os textos de Sérgio Niza e de Filomena Serralha fica claro que, para desenvolver a sua proposta de trabalho, o MEM encontrou um importante contributo na obra de Lev Vygotsky e na investigação pós-vygotskyana.

 

A proposta do MEM é compatível com as sucessivas alterações que vão acontecendo na Escola, nomeadamente do 1o Ciclo?

O 1o Ciclo foi descaraterizado quando se lhe retirou a monodocência, mesmo que, formalmente, ela continue. A coadjuvação nem sempre tornava fácil a gestão dos projetos de trabalho e do espaço-tempo, mas a forma desastrada com que, em muitos agrupamentos, as atividades de enriquecimento curricular se confundem com as curriculares não ajuda nada. Quando o horário de trabalho do grupo fica sujeito às vicissitudes e circunstâncias da gestão dos tempos dos professores de disciplinas, contratados pela escola ou por entidades externas à escola, é o próprio modelo escolar que deixa de ser compatível com o modelo organizacional de turma com um adulto, que existe, regra geral, para o jardim de infância e a escola primária. Esta descaraterização não acontece apenas em Portugal. Contudo, nos países que integram a OCDE, continua a haver uma escola primária em que, tendencialmente, existe um professor de referência que acompanha as crianças com uma abordagem integrada das várias matérias. O alerta para uma excessiva disciplinarização da aprendizagem em contexto escolar não é nova. Já Coménio alertava, na «Didática Magna», para o efeito nocivo desta prática quando se pretende que os estudantes se apropriem do conhecimento de forma global e integrada, para assim perceberem o mundo e interagirem com ele. No MEM, os professores que trabalham por disciplina habituaram-se a organizar o trabalho com os alunos e os estudantes. Em circunstâncias raras, consegue-se trabalhar em grupo mais alargado. Ou seja, a experiência existe, é possível. Agora, parece-me que no 1o Ciclo não se trata de nos adaptarmos ao que está a acontecer. A concentração na aprendizagem, muitas vezes mecanizada, de aspetos operacionais da língua materna e da Matemática – como tem acontecido nos últimos anos, em muitas escolas, devido a pressões colocadas por quem não tem cultura pedagógica – não interfere necessariamente, por si só, com uma eficaz abordagem integrada das aprendizagens. Mas dificulta, e muito. Urge chamar à razão de quem, desatentamente, se deixa levar por pressões imediatas para mais exercícios de treino, mais cadernos de preparação, para uma certificação pobre de um programa de trabalho empobrecido, agora introduzido por quem retoma à letra a prescrição de La Salle para a instrução na escola dos pobres, as petites écoles da França renascentista.

 

Pode dizer-se que a metodologia do MEM preconiza uma pedagogia alternativa?

Preferia falar de uma proposta de trabalho e não de uma metodologia, de um modelo para organizar o trabalho de aprendizagem de um grupo de pessoas. Os sócios do MEM apresentam um modo de trabalho pedagógico, assente no diálogo, que se inscreve no paradigma educacional da comunicação, como o definem a Ariana Cosme e o Rui Trindade. Pessoalmente, e falando de propostas pedagógicas, tento evitar a palavra ‘alternativa’ desde o final dos anos setenta, quando, ainda na Bélgica, juntámos associações, pais e professores numa plataforma que deu origem a escolas que inscreviam no seu projeto educativo uma proposta pedagógica explícita. Criaram-se escolas, atualmente agrupamentos, que variam entre si, que diferenciam as suas opções e os seus projetos de trabalho. Contudo, nem sempre é fácil evitar a comparação entre formas de trabalhar – e não estou a referir-me àquela invenção de parte da comunicação social de aferir um sistema de ensino em listas de sobe-e-desce com um mero número de aprovados num teste, colocando as escolas em concorrência escolas – porque existe a perceção coletiva de que o modelo de organização da escola é só um. Como dizem David Tyack e William Tobin, a gramática da escolarização pode ser descritiva ou normativa; e existe uma tendência para ser interpretada por decisores e utentes como normativa. Mais recentemente, interessei-me pela investigação em torno das relações sociais quando se observa a interação num processo de aprendizagem. Aqui torna-se muito claro que não existe uma forma escolar única de relações sociais, pedagogicamente bem definida; existem inúmeros variantes, ainda que com características em comum. As variantes são bem visíveis na interação que o adulto privilegia com a criança – na forma escolar de relação social que estabelece com a criança, ele considera-a como sujeito-objeto, sujeito-ator ou sujeito-autor do processo de aprendizagem. A interpretação da criança ou do estudante como sujeito-objeto da instrução está muito presente na matriz escolar desde a massificação do ensino. Digamos que, atualmente, é a variante hegemónica, e resulta do ritual da lição dada a muitos como se fossem um só. Mas continua a ser um modo possível de trabalho, entre outros modos possíveis…

 

Como é que um ativista do MEM se integra e relaciona numa Escola cada vez mais verticalizada, disciplinarizada, burocratizada? Que relações estabelece com os seus pares?

Os sócios do MEM têm, como todos os professores na escola pública, liberdade de ação pedagógica; liberdade que continua a fazer parte do Estatuto da Carreira Docente – quem trabalha na escola privada pode não ter esta liberdade de ação. Dito isto, há situações em que o trabalho não é fácil. Muitos sócios têm alertado para interpretações abusivas da legislação, sobretudo nas questões da avaliação dos alunos, mas também em relação à liberdade de ação pedagógica e à gestão democrática da sala de aula. Há agrupamentos onde os horários de trabalho das crianças do 1º Ciclo ficam seriamente afetados pela intromissão de blocos de AEC, que não são de coadjuvação, mas de separação disciplinar. Há agrupamentos onde o desconhecimento relativo à monodocência é grande, às vezes, mesmo nas próprias escolas do 1º Ciclo. Em qualquer caso, a primeira preocupação é criar e manter um espaço de trabalho onde a ação pedagógica se baseia na interação dialogada. O diálogo estende-se aos colegas de profissão; significa que o convite para ver o que fazemos está sempre na mesa, a disponibilidade para ajudar a pensar a prática e a profissão também. E muitas das atividades do MEM, como já referi, estão abertas a não sócios.

 

Quais são os valores fundadores do projeto do MEM para a educação escolar?

Existe um profundo respeito pelo outro. As crianças, os jovens, os adultos, com quem trabalhamos são considerados parceiros de pleno direito para elaborar o projeto educativo do grupo, são coautores do seu projeto de aprendizagem. Em todos os momentos apelamos à cooperação. O sucesso do grupo depende do sucesso de cada um; o grupo vai mais longe quando consegue ajudar-se a si próprio, para que cada elemento possa ir o mais longe possível. Penso que a diferenciação pedagógica, como o MEM a propõe, é um garante para a equidade em relação à apropriação do currículo da escola obrigatória. A diferença entre as pessoas, entre as crianças, é uma força motora para uma abordagem pluralista do conhecimento e do saber, para dar sentido ao projeto de trabalho de aprendizagem e para garantir uma cidadania cosmopolita. Esta cidadania não é só de inclusão, também é de construção, de aperfeiçoamento constante da relação com os outros e do entendimento mútuo perante uma tarefa de construção em comum, sempre que ela se mostre necessária, quer se trate do espaço-tempo no qual o grupo trabalha, ou na planificação dos projetos de trabalho, na avaliação e na negociação.

 

A atividade principal da associação é a autoformação cooperada? Porquê essa centralidade?

Esta centralidade tem a ver com o próprio ser do Movimento. Como referi, o MEM é constituído por educadores e professores que querem contribuir para a construção da profissão; fazem-no a partir da análise da sua prática. A reflexão que esta análise implica faz-se entre pares, em pequenos grupos de trabalho, onde cada um está apto a questionar o outro. Apoiado pelo Centro de Recursos, o grupo tem a possibilidade de escolher e estudar em conjunto textos de autores úteis a propósito do trabalho em curso. Os professores que integram os grupos apoiam-se mutuamente para escrever a partir da prática. A escrita que decorre da auto-formação em cooperação – ou cooperada – dá ao Movimento, como um todo, as entradas necessárias para melhorar a sua ação como coletivo. Sem a autoformação cooperada, o MEM não teria sentido, porque deixaria de estar em movimento.

 

Não são, certamente, uma associação apolítica. Com que expetativas olham para a mudança recente nas tutelas da Educação?

Na educação não é possível ser-se apolítico. O MEM, por si só, agrupa uma grande diversidade de opiniões. O Conselho de Coordenação Pedagógica, que reúne mensalmente as representações dos vários núcleos e os demais sócios que querem participar, é o órgão colegial que orienta a ação, tendo em conta as linhas anualmente avaliadas e atualizadas num encontro nacional. Essas linhas orientadoras transferem para a ação pedagógica o consenso que surge das opiniões manifestadas. A possibilidade e a capacidade de intervenção na polis começa pela aprendizagem que cada criança faz acerca dela na escola, quer os professores queiram ou não. Os sócios do MEM propõem conscientemente uma escola que proporciona a intervenção também consciente e cidadã das crianças, a começar pela sua participação no Conselho de Cooperação Educativa, instituinte do espaço-tempo e do projeto de trabalho. Na sintaxe do modelo de trabalho que o MEM propõe, este conselho está no centro. Sempre. Mas ainda não chegámos a uma escola verdadeiramente democrática, uma escola onde as crianças e os jovens participem de pleno direito no seu projeto de aprendizagem. A escola sempre teve grande relutância em dar voz às crianças. A todo o momento temos a esperança de encontrar na tutela interlocutores com quem possamos debater esta escola democrática. Pessoalmente, parece-me cedo para perceber se a recente mudança de tutela pode ser favorável a essa direção. Se for, estou convicto de que os impulsionadores encontrarão nas propostas do Movimento o necessário para o conseguir. O MEM trabalha com quem partilha a obsessão da escola acolhedora, a escola plenamente democrática dentro do que a legislação possibilita.

 

Para terminar, que votos para 2016?

A construção dessa escola acolhedora, onde as crianças são consideradas efetivos parceiros de trabalho, leva tempo. É um trabalho árduo. No início do novo ano civil, quando o ano letivo já vai avançado, deixo votos de redobrada energia para todas as mulheres e todos os homens que incansavelmente co-operam para conseguir a escola plural, da equidade e do deslumbramento.

António Baldaia (entrevista)

Sufya Cacau (fotografia)


  
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