[Diário de uma leitura de Valter Hugo Mãe]
«A história do homem calado» conta o percurso de uma comunidade no seio da qual vive um homem em tudo diferente. Conta-nos da facilidade com que se estranha e desconfia da diferença e de como é possível mudar atitudes ultrapassando as barreiras do desconhecido e da aparência. É uma preciosidade com 32 páginas e infinitas possibilidades de trabalho, brincadeira e aprendizagem. É um dos cinco livros que Valter Hugo Mãe escreveu para crianças e traz ilustrações do autor, em colagens coloridas de figuras originais e estranhamente agradáveis aos sentidos, que parecem dançar visual e simbolicamente com o texto.
Eu apareci, logo pela manhã, na frente de 22 carinhas luminosas e bem-dispostas, equipada com um grande sorriso e um pequeno livro. A história começa... Na primeira casa de uma rua vivia um homem muito calado. O cenário estava montado e a personagem principal apresentada. A rua era uma rua igual a qualquer outra rua. O que tinha de especial era um homem muito calado. Um homem cujo quotidiano se desenrolava lenta e caladamente. E, sobretudo, em solidão, porque, apesar de não passar despercebido a nenhum dos vizinhos, todos os vizinhos se faziam despercebidos quando ele passava. É que o homem calado, ao invés de ter dois olhos, tinha apenas um, e ao invés de ter dois braços, não tinha nenhum. No livro, o homem calado ganhava forma e, à minha frente, os rabos remexiam nas cadeiras e nos rostos apareciam expressões de estranheza. E é de estranheza que a história fala a seguir. Da estranheza que sentem as pessoas mais faladoras, os vizinhos do homem calado. Que estranho homem havia de ser [comentavam uns com os outros]. Mais até do que ter apenas um olho, ou não ter braços, mas porque era tão calado que parecia comer palavras por alimento. A estranheza e a desconfiança são sentimentos traiçoeiros que se nos entranham no corpo e nos levam a fazer coisas sem explicação. Assim era com os vizinhos do homem calado, que mudavam para o outro lado do passeio a fazer de conta que nem reparavam quando ele passava. À minha frente os rostos iam gravitando do franzir do sobrolho para o ligeiro pender de cabeça para o lado. Havia empatia por aqueles vizinhos que pareciam estar tão confusos como eles próprios. E pelo homem calado, que, por ser tão diferente e estranho, estava tão sozinho; e o sentimento de estar sozinho não é estranho a ninguém. A estranheza e a solidão, se não forem sacudidas de vez em quando, ganham raízes de onde nascem novos rebentos de mais estranheza e solidão. Os vizinhos do homem calado não se aproximavam dele por ser tão calado, e quanto mais se afastavam, mais ele parecia ficar calado. A sacudidela chegou um dia, assim sem se contar, muito espontânea e eficaz, na forma de um encontrão e dois sorrisos: Uma senhora não se apercebeu de que ele vinha no seu caminho [...] e, descuidadamente, esbarraram os dois. Eu faço um pequeno compasso de espera... E eles param de respirar. A história continua. O homem [...] ao contrário do que a senhora esperava [...] não fez cara feia. Sorriu e disse: – Boa tarde. A senhora sorriu também, um pouco envergonhada, e respondeu: – Estava tão distraída. Peço desculpa. [...] Seguiram depois [...], mas a senhora não resistiu a olhar para trás uma e outra vez, muito impressionada com o sorriso tão simpático do vizinho. Sussurram-se suspiros de alívio e sorrisos e satisfação por toda a sala. E os vizinhos do homem calado, tal como os meninos, ficaram todos muito irrequietos com aquele acontecimento [...] e pareciam ansiar pelo momento de o encontrarem novamente. Na rua como na sala, os sorrisos sacudiam a estranheza. A curiosidade substituía a desconfiança. Queriam saber mais, todos queriam saber mais. Um dia, vinha o homem da primeira casa pelo passeio quando um vizinho curioso o interpelou sorrindo. Bom dia, vizinho. Falaram um pouco sobre a beleza da manhã, que estava agradável e que sabia bem um passeio, e o homem da primeira casa da rua disse que estava de regresso para fazer um chá. O vizinho curioso torceu a expressão. Na minha frente, em algumas caritas, aconteceu o mesmo. Ficou muito confuso subitamente [...] pensou que o homem calado não tinha braços e não conseguiu perceber como poderia ele fazer um chá. [...] – Não se admire, caro vizinho, é que faço todas as coisas com os pés, como se fossem mãos, e se quiser ver tenho muito gosto em convidá-lo. Eu lia como Era impressionante que o homem da nossa história tivesse desenvolvido uma capacidade admirável de fazer com os pés tudo o que fazemos com as mãos, e os meninos pareciam já tão confortáveis com a ideia de cozinhar com os pés como se toda a vida a tivessem conhecido. Desfazem-se os nós da estranheza e os vizinhos, como as crianças à minha frente, vão descobrindo um mundo de coisas comuns dentro da diferença. Vão aprendendo como é simples a convivência e contagiante a atitude de aceitar. As pessoas [...] quiseram todas conhecer melhor o vizinho, [...] até que já ninguém reparava que o homem da primeira casa da rua não tinha braços ou que tinha apenas um olho e nós, que assistíamos inspirados ao caminho que aquela comunidade fazia, sentíamo-nos ensopar pelo espírito de abertura e completude que se desenhava na história. Chamava-se Gabriel, leio eu com a entoação de quem acaba de descobrir uma lei da Física. E a partir daí a história não volta a falar do ‘homem da primeira casa’ ou do ‘homem calado’, mas do senhor Gabriel, uma pessoa afável, que gosta de estar com os amigos, conversar e partilhar com eles os seus cozinhados deliciosos. A forma como nos referimos ao personagem muda e os seus traços definidores também, porque agora os vizinhos da rua, e nós dentro da sala, todos conhecemos o verdadeiro senhor Gabriel. Numa noite [...] alguém lembrou uma última vez de como as coisas eram antigamente e do preconceito tolo que sentiam em relação ao senhor Gabriel. [...] Depois alguém disse que já não percebia a diferença e que, verdadinha, eram todos diferentes e engraçados. – Eu tenho um nariz com um metro – dizia alguém brincando com o seu nariz particularmente grande. [...] – Pois eu, quando me rio muito, pareço uma avestruz – dizia uma senhora. Aqui houve gargalhadas na sala. Todos se riam com prazer das características das personagens da história, enquanto pensavam nas suas próprias particularidades. Afinal, na nossa sala, como naquela rua, como no mundo inteiro, as pessoas eram todas diferentes e, vistas com atenção, tinham mil e uma divergências que, por serem tantas, só ajudavam a que ficassem mais iguais. [...] O ser toda a gente tão diferente só prova que isso não importa para a amizade ou para o amor. Acabada a história ficámos uns segundos em silêncio. Eu a sorrir e a olhar para as carinhas deles. E eles muito sérios a olharem para mim. Ouviam-se as ideias e as dúvidas a chocalhar. As relações e paralelismos que cada um encontrava na sua realidade. – Então? Gostaram da história? – perguntei. – Siiiiiimmm! – responderam todos, uns em coro e outros não. – E o que é que vos parece que a história nos conta? – continuei. Silêncio... Depois, o primeiro bracito no ar, um segundo mais atrás, e um outro assim meio de lado e apoiado no cocuruto da cabeça. – A história diz que devemos ser simpáticos – responde o menino mais afoito. – Ó professora, isso era o que eu ia dizer! – diz o segundo. – Devemos ser simpáticos e sorrir e falar com as pessoas que conhecemos e que elas às vezes não falam como nós também não falamos mas não é por mal ou por não saberem é só porque têm vergonha. – Nós quando gostamos de alguém não queremos saber das coisas más das pessoas que gostamos – disse um terceiro menino. Eu dizia que sim a tudo com a cabeça, e o silêncio rompia-se definitivamente com ideias e opiniões a saírem aos solavancos e supetões, sem ordem, com todos a quererem falar ao mesmo tempo, sempre com os bracitos no ar. A interpretação de cada um era muito própria e as palavras para a exprimir eram muito suas, mas os conceitos subjacentes eram comuns a todos. A partilha de ideias era uma metáfora da história; muitas fórmulas diferentes de discurso à volta de uma mesma noção de vida em comunidade. No exercício do “apontar as palavras importantes da história”, as duas primeiras a ganharem lugar no quadro foram igual e diferente, que a partir de agora já não aparecem uma sem a outra. Alguém falou em amizade e amor. Apontámos também vergonha, estranho e esquisito. Solidão, sorriso e vizinho. E, às tantas, com o exercício já quase acabado, um menino diz, meio a perguntar: – Também pode ser importante a palavra preconceito? E uma menina, muito decidida, acrescentou: – Mas essa é uma palavra feia! E todos concordámos. Houve tempo para apreciar as formas e cores das ilustrações do livro e fazermos desenhos novos sobre a história. O senhor Gabriel era a personagem de eleição. Umas vezes, a passear sozinho pelo passeio, a caminho de casa. Outras, rodeado dos vizinhos que se tornam seus amigos. Num ou noutro caso aparece em casa a fazer chá com os pés. Mas sempre e invariavelmente com o único olho ciclopicamente desenhado no centro da testa. Depois falámos de todas as coisas que o senhor Gabriel conseguiria fazer com os pés e – algures entre o tirar um livro de uma estante e o tirar a rolha de uma garrafa – a ideia de que o senhor Gabriel era uma espécie de super-herói foi-se instalando e ganhando adeptos. Finalmente, dedicámos uns minutos a analisar as igualdades e as diferenças de cada um. Alguém apontou o facto de eu ter umas bochechas que chegavam para três pessoas – o que é bem verdade. Encontrámos narizes tortos, cabelos rebeldes, pés chatos, mindinhos inclinados para dentro e muitas outras particularidades preciosas. Rimo-nos muito das pequenas tolices uns dos outros. Assim, à vontade. Sem palavras feias. Sem preconceitos. Foi uma manhã inesquecível, a que passámos à volta d’A história do senhor calado. É um privilégio e uma ternura poder ver o mundo através das brincadeiras de 22 crianças e do olhar de um escritor maravilhoso como Valter Hugo Mãe. A ele é devido o imenso agradecimento pela dádiva do carinho, da tolerância, de tantas horas em que uma bibliotecária bochechuda e um grupo de crianças bem-dispostas se divertem e se sentem parte de um mundo melhor. Assim, sem pensarem em mais nada senão naquela sensação boa de se fazerem felizes uns aos outros.
Raquel Patriarca
Valter Hugo Mãe para crianças
A verdadeira história dos pássaros Ilustrações do autor Matosinhos: Booklândia-QuidNovi, 2009
A história do homem calado Ilustrações do autor Matosinhos: Booklândia-QuidNovi, 2009
O rosto Ilustrações de Isabel Lhano Carnaxide: Alfaguara Infantil, 2010
As mais belas coisas do mundo Ilustrações de Paulo Sérgio Béju Alfaguara Infantil, 2010
Quatro tesouros Ilustrações de Patrícia Furtado. Carnaxide: Alfaguara Infantil: FNAC, 2011
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