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O mapa

Quando fui dar aulas para aquela escola, fiquei um pouco assustada com a disciplina que, além das que normalmente lecionava, me disseram que ia dar: CMA, Cidadania e Mundo Actual. Com esta expressão elaborada, pensei que era uma coisa complexa e especial – era uma disciplina de um CEF, com um conteúdo mais simples do que o nome.
Tratava-se de uma escola numa zona semirrural, com algumas características de dormitório próximo da grande cidade. A maioria dos alunos que frequentavam aquele Curso de Educação e Formação fazia-o para cumprir a escolaridade, mais em resultado da pressão social do que por acreditar nos reais benefícios, individuais ou coletivos, da Escola. Por isso, tínhamos ali uma turma complicada, a maioria rapazes, com os olhares atravessados por um imenso descrédito, um enorme aborrecimento e um grande inconformismo.
Nem todas as atividades funcionavam com eles, e manter um clima de trabalho relativamente aceitável não era fácil. Tratava-se do típico grupo de adolescentes em que o “lá fora” invade permanentemente o espaço-aula, dando-lhe ínfima importância. Mas o “lá fora” não era para ser partilhado; era assunto só deles.
De entre todos, o mais complicado parecia ser o Sandro. Apesar de ser dos mais novos do grupo, impunha-se com autoridade aos colegas e só não funcionava como líder porque isso parecia não o interessar. Tinha um nível de conhecimentos escolares reduzido, mas percebia-se que era muito inteligente e dominava outros tipos de conhecimentos, muito diversos, de outros interesses e outras realidades.
Um dia propus-lhes fazerem um mapa de Portugal, o mais pormenorizado possível, ali mesmo, na aula e sem consulta, para tentarmos perceber o que cada um conseguia ter presente quando pensava na representação do seu país. Todos realizaram o trabalho, alguns com uma simplificação quase minimalista, despachando rapidamente a tarefa pedida, outros com pormenores surrealistas e imaginários, outros com localizações altamente improváveis ou escalas estranhas.
A maioria terminou rapidamente. Outros, sobretudo as raparigas, foram-se arrastando em pormenores, alguns deles fantasistas e incongruentes. Não se esqueceram de desenhar corações, borboletas e outras coisas do género. Só o Sandro se dedicou atentamente ao seu trabalho. Já tinha terminado o tempo previsto e o Sandro continuava, sobrancelhas franzidas, mordendo o lápis de vez em quando, escrevendo em pequenos espaços, quantidades de texto com informações e pormenores.
Depois recolhi os trabalhos e fui lê-los.
Para meu grande espanto, o do Sandro ultrapassava todas as expectativas: correto e com todas ou mais informações do que as que seria possível esperar. Ali estavam distritos, concelhos, cidades, capital de distrito, rios, acessos, núcleos habitacionais importantes, pontos de referência e mais alguns pormenores significativos.
Fiquei claramente perplexa – o Sandro era um aluno com dificuldades escolares e revelava ali um profundo conhecimento de geografia. O trabalho tinha sido feito na minha presença e sem consulta de qualquer espécie. Por isso, no dia seguinte perguntei-lhe:
— O teu mapa está muito bom, mas como sabes tudo isso, Sandro?
— Ora, stôra, é que há uns dois anos sou eu que vou com o meu tio, aos fins de semana, quando ele anda a fazer vendas. E temos que estar com atenção a todos os sítios onde vamos, não nos podemos enganar... Por isso é que eu sei tudo do nosso mapa.
Dei mais uma vez os parabéns ao Sandro, mas não me ocorreu perguntar-lhe o que é que o tio vendia ao fim de semana.
Só mais tarde – já o ano letivo chegava ao fim e o Sandro tinha terminado a custo o CEF – se soube de mais um escândalo que envolvia a família dele.
Escândalo que podia não ser modelo de cidadania, mas que estava claramente associado ao mundo atual: o tio do Sandro tinha sido preso por tráfico de armas e de droga.
Fora assim, em viagens que exigiam o conhecimento real do país, de lugares, de geografias físicas e sociais, que o Sandro aprendera tantas coisas; muito mais do que, eventualmente, teria aprendido na escola – um problema a resolver, na perspetiva de “reconaissance des acquis”, quando da certificação de conhecimentos.

Angelina Carvalho


  
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