O que se trata aqui é de denunciar a condenação dos indivíduos a serem apenas isso – entidades socialmente descontextualizados. Não é a liberdade de escolha que está em discussão, mas o quadro político em que ela se institui como instrumento de governação da educação.
As agendas e as políticas da educação têm vindo a ser marcadas por narrativas que enfatizam os valores e os dispositivos do mercado como princípios e instrumentos de governação. Nas últimas três décadas, esta perspetiva tem sido objeto de amplos e intensos debates entre quem defende a regulação da educação através do mercado e dos seus mecanismos e quem os questiona enquanto tal. Diz-se, com alguma frequência, que a questão e os debates são ideologizados e que é importante trazer investigação efetiva sobre os ‘reais’ impactos dos mecanismos do mercado no sucesso dos alunos, no desempenho das instituições educativas, assim como na segregação (ou não) dos alunos e das escolas. A escolha das famílias e a competição surgem politicamente articuladas, no sentido em que as escolas têm de se configurar como objeto da preferência de quem escolhe, tornando-se, ao competirem por essa escolha, mais eficientes e eficazes. É, contudo, inelutável o caráter ideológico destes debates, pois não há ‘lugares brancos’ a partir dos quais as questões políticas sejam agendadas e desenvolvidas. Os resultados da investigação sobre a matéria são, eles próprios, lidos no âmbito de quadros narrativos (ou ideológicos). Os aparentes consensos em torno de alcançar o sucesso dos alunos, tornar o desempenho das escolas mais eficiente e eficaz e a não segregação de grupos populacionais, de zonas geográficas, famílias ou alunos, não chegam para ocultar a marca ideológica (ou narrativa) que enquadra a definição desses objetivos e a metodologia política para os atingir.
A agenda política Pouco depois da entrada em funções da nova equipa do Ministério da Educação e da Ciência, a questão da escolha dos estabelecimentos de ensino por parte dos pais e encarregados de educação foi colocada na agenda com uma nova força. Os mass media fizeram eco do empenhamento do Governo para que, num futuro próximo, as famílias possam escolher a escola dos filhos. Em outubro de 2011, o jornal Público, por exemplo, noticiava que Portugal iria juntar-se ao conjunto de países onde tal instrumento político foi implantado, designadamente o Reino Unido e os Estados Unidos da América (EUA). O objetivo parece ser que a devolução às famílias da possibilidade de decidirem onde é aplicado o dinheiro pago pelos contribuintes institua a competição entre escolas públicas, forçando-as a mudar no sentido de, pela qualidade e diferenciação na resposta às necessidades dos alunos, se tornarem mais atrativas. O ministro, na altura, informou estarem a ser feitos estudos para identificar o melhor modelo para Portugal.
O que diz a investigação Ora, o que a investigação, na sua grande parte com origem no Reino Unido e nos EUA, tem maioritariamente revelado é que, havendo uma associação positiva, ainda que pouco significativa, entre a competição entre as escolas e o seu desempenho enquanto organizações, não existe correlação clara entre o sucesso escolar dos alunos e a liberdade de escolha. Num relatório para a OCDE sobre os mercados em educação, Waslander, Pater e Van der Weide (2010) reviram mais de 200 estudos empíricos sobre as ligações entre a escolha parental e a competição entre escolas (básicas e secundárias) e os resultados educativos. Chegaram à mesma conclusão: os estudos ou não identificam quaisquer efeitos, ou estes são mitigados, fragmentados e, frequentemente, inconclusivos. Estes resultados estão em linha com os de outros estudos, segundo os quais, os referidos efeitos são, na melhor das hipóteses, mistos. Ainda que sejam poucas as pesquisas a reportar efeitos negativos da competição e da escolha, é a frágil ou, em alguns casos, mesmo inexistente relação destas com impactos educativos positivos que agora parece oferecer-se como base para a sua implementação.
Se não é ideologia, é o quê? É, evidentemente, necessária mais pesquisa sobre os impactos destes instrumentos de governo da educação, mas surge clara a inspiração ideológica da centralidade atribuída à escolha e, logo, à competição. Estas emergem, no atual contexto da educação portuguesa, enquadradas na perspetiva do individualismo de inspiração neoliberal. A possibilidade de escolha dada aos cidadãos é algo inerente à própria ideia de participação democrática, na perspetiva de que os indivíduos devem ser sujeitos das suas escolhas. O que se trata aqui, porém, é de denunciar a condenação dos indivíduos a serem apenas isso, entidades socialmente descontextualizados. Não é a liberdade de escolha que está em discussão, mas o quadro político em que ela se institui como instrumento de governação da educação. A insuspeita Diane Ravitch, que teve grandes responsabilidades no Departamento da Educação dos EUA, onde entrou em 1991, a convite de George W. Bush, no seu livro «The Death and Life of the Great American School System» (2010), diz que aderiu “ao argumento de deixar o dinheiro federal ir com os estudantes pobres para uma escola da sua escolha. Se as crianças não eram bem sucedidas na escola pública regular, por que não deixá-las usar o financiamento federal para irem para outra escola pública ou privada – ou até religiosa?” Mas concluiu duvidando que a escolha e a competição fortalecessem a educação americana e que “poderia ser mesmo perniciosa para as escolas públicas a saída dos melhores alunos das escolas das zonas mais pobres”. Dados os estudos sobre os impactos da competição e da escolha e as experiências do seu desenvolvimento em diversos contextos nacionais, introduzi-las na agenda política como valores em si mesmos, se não é ideologia, é o quê?
António M. Magalhães
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