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Revisão curricular: alguns apontamentos críticos

A revisão da estrutura curricular do sistema educativo, que o XIX Governo recentemente fez publicar (26.03.2012), não pode deixar de ser objeto de algumas considerações críticas em função dos modos, princípios e medidas que nela encontraram consagração. Uma primeira questão que importará relevar ressalta do que poderíamos chamar a leviandade estilística que caracteriza o texto de apresentação da temática. Tratando-se de uma matéria de enorme importância material e simbólica, a revisão do currículo deveria ser objeto de algum cuidado e rigor expressivo e analítico que preservasse o sentido da responsabilidade que cabe a um documento desta natureza.
Não deveria ser necessário lembrar aos responsáveis pela iniciativa que legislar sobre currículo significa condicionar de forma direta o presente e o futuro das gerações mais novas e de todos os profissionais envolvidos no processo educativo e, de forma indireta, o processo e o sentido de desenvolvimento do próprio país. Nada disso transparece do texto em questão. Nenhuma reflexão séria sobre o significado político-pedagógico da decisão tomada, nenhuma fundamentação que exceda o horizonte da conveniência linguística imediata. Daí o estilo meramente enunciativo e assertório, como se de uma simples ata se tratasse.
No plano dos princípios, a estratégia adotada é a da invocação das máximas estafadas, como “a qualidade do ensino, o equilíbrio do sistema educativo, a autonomia pedagógica e organizativa das escolas”, a que se agrega a referência a valores tão vagos com o “esforço individual e coletivo, o trabalho, o rigor e a qualidade do que se aprende”.
Se nos perguntássemos a que título este conjunto de referências genéricas justificaria uma nova proposta de revisão curricular, teríamos toda a dificuldade em responder, face à vacuidade e universalidade abstrata da sua significação, não obstante a consensualidade de que gozam.
Teremos, então, de procurar outras instâncias de justificação para encontrar a verdadeira matriz que motivou o legislador. E essas, vamos encontrá-las no plano político-administrativo e respondem a itens tão prontos e imediatos como a “atualização do currículo, em nome do combate à dispersão curricular; a melhoria do acompanhamento dos alunos, com uma melhor avaliação e a deteção precoce de dificuldades; o aumento decisivo da autonomia das escolas na gestão do currículo e numa maior liberdade de escolha das ofertas formativas”.
Ninguém negará legitimidade formal a estas três instâncias para exercer a função de suporte estrutural de uma qualquer formulação de currículo, porquanto correspondem à tríade essencial suposta na sua identidade: o conteúdo, os destinatário e os meios indispensáveis à prestação do serviço. O problema reside no que se oculta por detrás da simplicidade imediata destas fórmulas, na missão que lhes está confiada, nas condições reais da sua possibilidade de concretização.
Nestes termos, à medida que avançamos na análise das propostas concretas que o documento vai desvelando, numa linguagem que se quer sempre ‘bem intencionada’, deparamo-nos com uma lógica que não tem nada de ‘inocente’: assim, reconhece-se que “atualização do currículo” e “redução da dispersão” significam reforço de uma conceção de currículo centrado sobre as “disciplinas fundamentais” (que pelos espaços/tempos atribuídos se intui serem as do núcleo científico-natural, com ressalva para o Português e o Inglês) e subalternização ou subutilização da atividade das expressões, com alguma exceção para o 1º Ciclo, onde é preconizada uma vaga coadjuvação entre docentes de ciclos diferentes para o efeito.
E se pretendermos saber de que modo se concretiza “a melhoria do acompanhamento dos alunos”, teremos oportunidade de ler que serão implementadas “medidas que incrementem a igualdade de oportunidades, de homogeneidade relativa em disciplinas estruturantes, ao longo de todo o Ensino Básico, atendendo aos recursos da escola e à pertinência das situações”. Mas quando tomamos conhecimento das medidas entretanto anunciadas, impondo um limite mínimo de 30 alunos por turma, talvez tenhamos de admitir que a linguagem ‘bem intencionada’ apenas significa uma estratégia de “incrementar a homogeneidade relativa em disciplinas estruturantes”...
Que intenção real se dissimula por detrás desta fórmula? A constituição de turmas por nível?
É certo que o documento prevê o “aumento decisivo da autonomia das escolas”, a que atribui tudo aquilo que o currículo formal achou por bem desquitar, as chamadas “componentes curriculares complementares com carga flexível”. Aí se incluem a Educação Cívica, a Educação para a Saúde, a Educação Financeira, a Educação para os Media, a Educação Rodoviária, a Educação para o Consumo, a Educação para o Empreendedorismo e outras.
Face a esta dissociação entre currículo central e currículo local, o que parece irrecusável nesta revisão é a consagração da distinção entre a suposta nobreza do mundo cognitivo e a banalidade do mundo do ser e do agir, do mundo da vida e da ação. Convenhamos que esta dissociação só pode significar aprofundamento das desigualdades...
O que não pode deixar de constituir mais um desafio para os profissionais da educação.

Manuel Matos


  
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