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O cratês: entre o dizer e o fazer

Nuno Crato foi coerente com um projeto de educação escolar onde se identifica de forma abusiva a informação com o saber; onde se continua a afirmar que competências e conteúdos são dimensões mutuamente exclusivas, quando são as competências que conferem pertinência cultural e formativa aos conteúdos.

Para que serve a Escola? Sabemos que é uma pergunta gasta. Fazemo-la, no entanto, porque o programa de governação do atual ministro da Educação a isso nos obriga. Um programa que oculta as suas motivações políticas, quando se invoca quer a necessidade de se reintroduzir nas escolas a sensatez pedagógica – que, segundo Nuno Crato, o eduquês foi banindo –, quer a necessidade de se gerir mais eficazmente os recursos humanos e financeiros de que o Ministério da Educação dispõe. Um programa que tem vindo a ser implementado tanto com o beneplácito de uma imprensa que, afinal, foi a responsável pela eclosão do cratês, como por uma atitude recatada, da parte do personagem, na relação que mantém com a opinião pública, de forma a evitar os desgastes dos debates e, assim, a não desperdiçar o capital de confiança que foi adquirindo como cruzado na luta contra o alegado rousseaunianismo que tem vindo a minar a 5 de Outubro.
Uma luta que, em larga medida, se limitou a explorar os estereótipos e os preconceitos partilhados, entre outros, por muitos professores, a quem se foi acenando com o retomar da autoridade perdida e da seleção académica dos alunos como solução mágica para todos os males que afligem as escolas. São estes estereótipos e preconceitos que explicam, por exemplo, quer o destino dos Centros de Novas Oportunidades (CNO), quer a revogação, por via do Despacho no 17.169/2011, do documento onde se estabeleciam as competências essenciais do Ensino Básico.
No caso dos CNO valorizaram-se, sobretudo, as vulnerabilidades de um programa cujo reconhecimento internacional se ignorou e ocultou, ainda que, e ao contrário do que se anunciou, os CNO não tenham sido extintos. Assim, ao que assistimos foi à redução, por um lado, do número de centros em atividade e, por outro, à deslocalização daqueles que sobraram, das escolas públicas para entidades privadas, no âmbito de um processo obscuro e arbitrário. O património construído, neste domínio, desperdiçou-se de forma irresponsável, ainda que uma tal decisão do Ministério da Educação não deva ser lida como manifestação de incompetência, mas como expressão de uma visão darwinista do mundo, a qual explica, também neste domínio, as decisões de Nuno Crato.
Por sua vez, a revogação do documento onde se estabelecem as competências essenciais de referência para o Ensino Básico assemelha-se mais, pelo tom e pela forma, a um ajuste de contas, marcado pelo revanchismo, com a política educativa que teve em Ana Benavente a principal e mais combativa protagonista. Trata-se de uma decisão que constitui uma das manifestações mais expressivas quer do que é a falta de rigor na análise de uma problemática educativa, quer do peso que a ignorância ocupa no debate educativo em Portugal. Um ajuste de contas que, apesar da simpatia com que foi recebido por um número significativo de professores, exprime um recuo inequívoco na construção de uma Escola que se possa afirmar como espaço de trabalho mais significativo para docentes e discentes.
Neste sentido, Nuno Crato foi coerente com um projeto de educação escolar onde se identifica de forma abusiva a informação com o saber, mesmo que todos os dias nos tenhamos de defrontar com uma Escola que se parece mais com uma sessão do “Elo mais fraco” do que com um espaço potenciador de aprendizagens e de formação intelectual credível. Um projeto onde se continua a afirmar que competências e conteúdos são dimensões curriculares mutuamente exclusivas, quando, na verdade e em qualquer circunstância, são aquelas competências que conferem pertinência cultural e formativa aos conteúdos, no âmbito de um processo de formação que seja mais complexo e culturalmente mais exigente. Assim, quando afirma o primado dos conteúdos sobre as competências, o Despacho no 17.169/2011 não deixa de exprimir, por um lado, mais um equívoco do cratês e, por outro, a opção por uma Escola que deve continuar a ser gerida como um espaço de reprodução cultural.
Se o atual titular do Ministério da Educação fosse tão rigoroso como exige que os outros sejam, o que diria é que as competências a respeitar são, apenas, aquelas que circunscrevem a atividade dos alunos à escuta, à evocação e à repetição – competências decisivas para o projeto de educação pelo qual Nuno Crato se tem vindo a bater. Um projeto que, reconheça-se, acaba por penalizar todos os alunos, na medida em que não só impede a possibilidade da Escola se afirmar como uma instituição mais culta, mais inteligente e mais humana, como afirma até que a necessidade de transformação dessa escola passa, acima de tudo, pelo refinamento dos seus mecanismos e dispositivos de seleção académica.
Será este o projeto que desejamos?
Se a resposta for afirmativa, estamos perante um problema maior: o de saber para que precisamos de contestar as alterações curriculares, o aumento do número de alunos por turma ou a constituição dos hiperagrupamentos.
É que, para uma Escola que se resigna a aceitar como inevitáveis as desigualdades determinadas pelo berço onde cada um nasceu, é indiferente – a não ser por razões estritamente corporativas – se os alunos se veem impedidos de ter experiências educativas em função de opções curriculares mais amplas, se as turmas possuem mais de 25 alunos ou se estamos a caminho de ter, apenas, um agrupamento escolar em cada um dos municípios do país.

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
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