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O soldado que lutou para aprender

Para a Clara, neta do Adriano

A estreia do filme foi numa tenda montada no recreio da escola. Em vez de passadeira vermelha, havia pó e cadeiras de plástico, mas o público era muito entusiasta – para as crianças de Kisames (nas montanhas de Ngong, uma hora ao sul de Nairobi, capital do Quénia) era a primeira sessão de cinema.
“Quem é que já viu um filme?”, perguntou Justin Chadwick, o realizador. Nem uma mão se levantou. No entanto, os alunos da escola primária de Oloserian já tinham tido o papel principal frente a uma câmara. “Não vai ser o público mais crítico, mas é aquele que realmente me interessa”, disse Chadwick, em frente a uma plateia de crianças, alguns pais e professores.
Recordando os dias de rodagem, acrescentou: “As crianças foram maravilhosas. Introduzimos as câmaras muito lentamente e, como nunca tinham visto um filme ou TV, estavam mais interessadas nas aulas do que nelas. Prometi que voltaríamos para lhes mostrar o filme, e é maravilhoso cumprir a promessa. Espero que se sintam orgulhosos do que fizeram”.
The First Grader
é um filme inglês baseado na história verdadeira de um improvável herói africano. Kimani N`ganga Maruge foi um combatente Mau Mau na guerra da independência contra os ingleses. Quando o governo queniano anunciou a gratuitidade da educação primária para todos, em 2002, ele dirigiu-se à escola local, em Eldorit, e pediu para que o ensinassem a ler. Tinha 84 anos. Contra a feroz oposição de funcionários e pais, que não queriam que um lugar precioso fosse dado a um velho, Maruge foi aceite na escola ao lado de colegas com seis anos.
A importância de Maruge e deste filme vai muito para além das crianças e da electricidade, da água e da nova escola que a produtora conseguiu levar àquela aldeia in the middle of nowhere. Toca na discussão do que é hoje a educação básica no Quénia.
Poucas semanas antes da estreia do filme, a imprensa revelou que 50 milhões de dólares destinados às escolas tinham desaparecido dos cofres do Ministério da Educação. Continua a haver problemas na instalação de escolas nas zonas rurais e na persuasão dos pais para colocarem a educação à frente do emprego para os filhos. A determinação de Maruge para aprender veio chamar a atenção para isto – um combatente da liberdade, que foi preso e torturado pelos ingleses, acreditou que a educação foi uma das coisas por que tinha lutado.
A história de Maruge tornou-se conhecida através da imprensa local, e depois da internacional, e foi convidado a falar nas Nações Unidas, em 2005, sobre a importância da educação em África. Continuou a estudar mesmo depois de a sua casa ter sido queimada durante a violência que grassou após as eleições de 2008. Em 2009, morreu em Nairobi, com um cancro no estômago.
“Quando as pessoas conheceram esta história, sentiram-se inspiradas. Maruge trouxe muitas, muitas pessoas para as escolas no Quénia”, disse Oliver Litondo, jornalista da televisão queniana que se tornou actor para interpretar Maruge. “Ele inspira todos os dias quenianos que tinham desistido daquilo que desejavam. Maruge restituiu a ambição a pessoas que pensavam que já não a tinham”.
Pauline Sipilion, 14 anos, foi ostracizada pela família por ter abandonado o pastoreio de cabras e ter ido para a escola depois de ouvir falar em Maruge. “Não posso voltar ao lugar onde vivia, mas agora tenho esperança em poder vir a ser professora. Por isso é importante que as pessoas conheçam a sua história”, disse.
Com o tema do triunfo sobre a adversidade, da força e da importância da educação, e como o valor das pessoas não diminui com a idade, The First Grader também toca na crueldade dos campos de detenção ingleses dos anos 50, em que Maruge esteve internado. “Quando li o argumento, não parei” – disse Litondo – “li tudo o que podia sobre os Mau Mau e comecei a perceber o que significou, para pessoas que não tinham nada, lutar para terem uma parcela de terra. Para mim, como queniano, Maruge percebeu a procura da posse da terra pelos sem terra. Maruge mereceu a Educação”.

Paulo Teixeira de Sousa


  
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