A criança brinca para pensar o mundo. E brinca com objetos, com a língua, brinca nas práticas, no diálogo consigo mesma e com os outros. Brincando como atividade estética exotópica, a criança insere-se no mundo e o compreende.
A fala do professor Augusto Ponzio (2010) em um congresso chamado Rodas Bakhtinianas, foi disparadora de um movimento do pensar crítico. Ponzio nos disse que, segundo Bakhtin, “não se pode ensinar a língua sem a Literatura”. Segundo esse autor, quem escreve não faz mera transcrição ou toma notas, mas muito mais que isso, transcria a vida e a experiência por meio da linguagem escrita. Para ensinar uma criança a ler e a escrever, precisamos recuar e ver a vida não como ela é (tarefa do transcritor), mas dela tomar distância e, saindo do seu papel, ver-se no duplo que a escrita permite. As relações sociais, como as escolares, são, antes disso, relações humanas, ou seja, relações entre seres humanos concretos, históricos e com uma história pessoal, “sujos do mundo”, e não seres etéreos dos manuais humanistas. Cada um que cruza nosso caminho é ao mesmo tempo a alteridade radical com quem dialogamos sem sínteses, e partilha conosco um tempo e um lugar, referências culturais e pertencimentos sociais. Quase o mesmo, mas não exatamente, como diz Bhabha. O conceito de alteridade precisa estar bem pensado ao falarmos dos encontros humanos, alteridade essa que não é sinônimo de diferença, mas de outredade. Essas relações são mediadas pela palavra, mas que palavra é essa à qual nos referimos? Para além dos discursos monológicos de que a Escola se encontra repleta, a opção é pela via da palavra literária. “O texto literário excede o que lhe é contemporâneo” [Mikhail Mikhailovich Bakhtin, “Para uma filosofia do ato responsável”]. A propriedade da palavra literária, para Bakhtin, encontra-se no sentido da exotopia que ela possibilita, expressando-se a alteridade constitutiva da consciência e da autoconsciência. É no distanciamento entre a palavra literária, que nunca é direta e monológica nem aspira à interpretação, que o sujeito pode ser chamado à escuta responsável, ou seja, pode, pelo efeito do distanciamento, suspender a inexorabilidade das condições do presente e dialogar, no grande tempo, consigo mesmo e com o outro. Mas o que teria o brincar infantil que ver com isso? Compreendemos que brincar é a atividade infantil por excelência, forma de expressão de seu pensamento, de sua afetividade, lugar onde se consolidam suas experiências sociais, culturais e cognitivas. Entretanto, ao estudarmos o conceito de exotopia em Bakhtin, nos aproximamos das reflexões sobre o brincar. A exotopia é o colocar-se de fora, é a ação humana que, por meio da atividade estética, desloca-se do eu sou inexorável da realidade existencial e, no intervalo que possibilita ver-se no duplo, pergunta-se, esse sou eu? Observadora dos processos infantis do brincar, é inevitável pensarmos que essa atividade infantil por excelência configura-se como situação estética que propicia a exotopia bakhtiniana. Podemos ir mais longe: a criança brinca para pensar o mundo. E brinca com objetos, brinca com a língua, brinca nas práticas, no diálogo consigo mesma e com os outros. Entendendo o conceito de brincar como exotopia, podemos observar nas diferentes práticas infantis o insinuar dessa subjetividade – culturalmente construída – como autoria, ou seja, como o processo onde, brincando como atividade estética exotópica, a criança insere-se no mundo e o compreende. É nesse processo que as crianças vivem suas infâncias, tecendo experiências onde constroem conhecimentos enquanto constroem a si mesmas na relação com esses saberes, fazeres e modos de pensar. Em alguma medida, pensamos que a reflexão infantil é elaborada nesse processo, já que ainda lhes é incipiente o distanciamento que a linguagem reflexiva permite ao adulto. Quiçá, o brincar como exotopia seja uma forma infantil de reflexão, tomando a palavra no seu sentido etimológico: dobrar-se sobre si mesmo.
Marisol Barenco de Mello
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