As bicicletas são um bom exemplo para estimular o debate sobre a sustentabilidade ambiental e a equidade num mundo marcado por profundas desigualdades. Com as contingências da crise que atravessamos, talvez os parques de estacionamento passem a ter mais bicicletas e menos carros.
Era uma manhã de chuva e vento e eu não tencionava ir em duas rodas para a universidade. Mas nos trajectos mais curtos pelo bairro, mesmo sem sol, já não dispenso a bicicleta, que, entretanto, na razão inversa da minha infância, fui dotando de acessórios e apetrechos: porta-bagagens e cesto amovível, pequeno saco térmico preso ao volante e até um conta-quilómetros. Ora, nessa manhã, quando abri a porta de casa e olhei para o patamar, dei conta que a minha bicicleta tinha desaparecido. Andei resmungão durante uns dias, não me perdoando a imprudência de não a prender, mesmo dentro do prédio. Como conservava a chave do cadeado, passei a andar com ela no bolso, não fosse o caso de a ver passar conduzida por alguém que eu, de rompante, me dispunha a abordar dizendo: acho que essa bicicleta é minha e posso prová-lo abrindo o cadeado com esta chave que tenho aqui. Podem os leitores rir-se, mas durante meia dúzia de dias sonhei um desfecho de conto de fadas, uma espécie de versão velocipédica da Cinderela – só que em vez de sapatinho, havia uma chave que permitia identificar e tomar nos braços a donzela, neste caso a bicicleta. Frequento pouco as chamadas redes sociais na internet, mas decidi colocar um breve texto na minha página, anunciando ao mundo o meu infortúnio e sentenciando o atrevidote que me gamara a bicla com um castigo – durante duas semanas, devia levar-me a casa as compras diárias e transportar o lixo para reciclar – e uma pena acessória: ver em sessões contínuas o Ladri di Biciclette, de Vittorio de Sica. As reacções e comentários que vários amigos deixaram fizeram-me bem, e até consegui esse filme que eu nunca tinha visto. Filmado em 1948, em Roma, Ladri di Biciclette conta a história dramática de um homem que consegue um emprego a colar cartazes e a quem, no primeiro dia de trabalho, roubam a bicicleta. Inicia, então, acompanhado do seu filho pequeno, uma desesperada busca pela cidade. No fim, acaba por tentar roubar uma bicicleta, é perseguido e finalmente apanhado por uma multidão. Semanas depois, ultrapassada a minha perda a golpes de cinema neo-realista e já na posse de uma nova bicicleta, diz-me um estudante, quando estamos a entrar na sala de aula: Então o professor faz bicicleta! Aquele faz bicicleta deu-me o mote para a aula que, nesse dia, era sobre Ecologia Política. Na verdade, retorqui, eu não faço bicicleta. Isso é o que fazem os desportistas e os corredores. Não faço bicicleta por desporto (primeiro teria que deixar de fumar) ou exclusivamente por recreação (não teria tempo), mas como forma de me deslocar no espaço urbano. Milhões de outras pessoas fazem o mesmo por esse mundo fora, a maioria por não ter outras alternativas, como no retrato neo-realista de Vittorio de Sica, ou por a considerar uma alternativa de mobilidade urbana. É o caso de David Byrne, o músico dos Talking Heads, que também é fotógrafo e gosta de viajar para todo o lado com uma bicicleta desdobrável na bagagem. Quando chega a uma cidade desdobra-a e desloca-se nela. Há várias décadas que faz o mesmo na zona de Nova Iorque, onde vive. Fiquei a saber isto lendo o seu livro Diário da Bicicleta, recentemente publicado em português (Quetzal, tradução de Vasco Teles de Menezes). Desconhecia totalmente esta faceta de Byrne como ciclista e activista do que eu chamaria “planeamento urbano amigo do uso da bicicleta” e, se me permitem a expressão ciclística, vou seguir na roda do ex-Cabeça Falante. Afirma Byrne: “Eu não ando de bicicleta por todo o lado por ser ecológico ou por valer a pena. Acima de tudo faço-o pela sensação de liberdade e de satisfação. E tenho a consciência de que, em breve, sou capaz de vir a ter muito mais companhia do que tenho tido no passado, e que algumas cidades se estão a preparar para essas mudanças inevitáveis e, em resultado disso, a ter benefícios”. Nem mais. Inteiramente de acordo com o activismo lúcido e não fundamentalista de Byrne – mesmo que por vezes se engane nos prognósticos que faz, como é o caso da suposta aversão dos habitantes de Buenos Aires às bicicletas. Voltando à Ecologia Política, que é como quem diz aos temas da sustentabilidade ambiental e da equidade num mundo marcado por profundas desigualdades no acesso aos recursos, na distribuição da riqueza e nos gastos energéticos: descobri que as bicicletas são um bom exemplo para pensar e estimular, junto dos meus alunos, o debate sobre estas questões. Com as contingências da crise que atravessamos, talvez os parques de estacionamento das universidades passem a ter mais bicicletas e menos carros, tal como aconteceu em Buenos Aires.
Filipe Reis
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