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Não é a crise, mas o sistema!

Um rastilho incendiário espalha-se pelas praças, pelas ruas, pelos bairros, reclamando o espaço público. “Tomar a rua” tornou-se um movimento performativo de intensidade nova, num plano que se refina em escalas globais, nacionais e locais, usando meios de comunicação e tecnologias de “agit-prop” da era digital.

África, Europa, Ásia, Américas... Ocupando as praças, movimentos massivos ou pequenos grupos ganham voz, expressam a indignação, ensaiam a participação colectiva, explorando a vivência performativa de espaços públicos em resposta aos processos de exclusão, silenciamento e invisibilidade em curso nas sociedades contemporâneas.
Arturo Escobar havia já sublinhado a relevância dos movimentos sociais para um melhor entendimento da modernidade, não apenas como o ápice do protesto por condições socioeconómicas, mas, sobretudo, como uma batalha cultural. Alain Touraine referia-se a eles no quadro da luta sobre o controlo da historicidade.
Quando, subitamente, aparentemente do nada, em Janeiro de 2011 e durante 18 dias consecutivos, na Praça Tahrir, no Egipto, se deu o despertar da chamada revolução árabe, assistimos à transformação daquele espaço público numa expressão colectiva inimaginável. O quadro era, todavia, altamente tensional.
A praça, conhecida pelo seu potencial turístico, mas também como símbolo da revolução republicana do Egipto (1952), estava agora profundamente alterada nos seus usos quotidianos e, sobretudo, na organização da sua paisagem. Pessoas empunhando bandeiras, cartazes, o Alcorão, telefones celulares e máquinas digitais, bem como uma nova cenografia daquele espaço repleto de mantas, tendas e cadeiras – mas também tanques e carros policiais – eram as marcas visíveis e pictóricas do descontentamento. O trânsito encerrado e o “acampamento” em vigília permanente permitiram também dar perenidade ao protesto que finalmente logrou a destituição do presidente e do seu governo. E desta forma, a ocupação transgressora do espaço público, a discussão e a luta pela historicidade fez-se através de uma evidente narrativa performativa que resgatou a esfera pública da acção política de novo para a rua, para a praça.
O filósofo espanhol Daniel Innerarity assinala que o modelo de espaço público pré-moderno é diferente do modelo de esfera pública moderna, que através da emergência da imprensa e de novos meios de comunicação se abstrai das assembleias concretas. E denota que na modernidade o modelo ocidental de espaço público acabou por se constituir em redor de instituições democráticas representativas, frequentemente também responsáveis pela sua “refeudalização” burocrática. Também assim, o poder passa a ser entendido como dominação, o Estado como instância das regulações sociais e a opinião pública como lugar das manipulações dos meios de comunicação social. E este, de alguma forma, é o contexto em que justamente estes processos de mobilização de massas se têm vindo a espoletar na actualidade.
Alberto Merlucci assinala uma função profética aos movimentos sociais. Estes anunciam à sociedade que um problema fundamental existe numa dada área e tornam-se uma espécie de novos media. Os movimentos sociais trazem consigo, portanto, novas práticas sociais, operando em parte através da constituição de espaços para a criação de novos significados. Estes significados eliciam dimensões económicas, políticas e sociais no interior do campo cultural – são as arenas adequadas para explicitar as interrelações entre vida quotidiana, democracia, Estado e redefinição da prática política, sob a lupa da tensionalidade das relações de poder e dominação que, simultaneamente, regulam e são objecto de reapropriação pelos sujeitos na sua quotidianidade.
O processo que queria destacar neste contexto diz respeito ao movimento assembleário de rua e de bairro, que nasceu, sobretudo no contexto espanhol, como o enfoque central do movimento e que se tem disseminado globalmente. Estes processos estão obviamente mais permeáveis a resultados tanto abertos como incertos. Quando a esfera pública se torna o espaço onde todos podem convencer e ser convencidos ou amadurecer em conjunto as suas opiniões, como neste modelo assembleário, a política torna-se um processo criativo que releva do âmbito da surpresa e da aprendizagem colectiva. A incerteza é, deste modo, um indicador da qualidade dos espaços democráticos que, curiosamente, havia sido esvaziada pela dinâmica do debate político confinado aos parlamentos, às “salas fechadas” ou aos debates mediáticos (sempre povoados de especialistas e comentadores).
Em contrapartida, este (novo) espaço de discussão política, construído pelas vozes sucessivas de pessoas anónimas, parece procurar gerir pela discussão a heterogeneidade e os interesses pessoais e colectivos (e até as emoções e os relatos biográficos). Tem um valor democrático acrescido, porque não é simplesmente o local onde todos têm o direito de defender os seus desejos ou as suas convicções, mas porque os põem efectivamente em jogo no seio de um debate alargado. E ali, criativamente, se estabelecem os limites e as regras da discussão democrática, fora de um circuito institucional e convencional onde o cidadão comum era fundamentalmente um espectador passivo.
A praça adquire novos significados, o seu território assume outros sentidos, e é agora habitada por aqueles que se querem tornar espectadores emancipados (para usar a metáfora de Jacques Rancière) no teatro político. Esta declaração performativa sob a forma de acampamento que reclama o direito a re-habitar o espaço público como espaço de construção da esfera pública, do debate político e da produção de democracia, é mais do que um acto simbólico – ela produz realidade!
Tal como Rancière sublinhava para a arte contemporânea, estas performances políticas “exigem dos espectadores que desempenhem o papel de intérpretes activos, que elaborem a sua própria tradução para se apropriarem da ‘história’ e dela fazerem a sua própria história. Uma comunidade emancipada é uma comunidade de contadores e tradutores”. Então percebemos definitivamente que o que está em causa não é a crise (do capitalismo), mas o próprio sistema.

Paulo Raposo


  
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