Na Póvoa de Varzim, cidade do litoral norte português cheia de carácter, decorre anualmente um evento literário denominado “Correntes d’Escritas” que decerto encheria de orgulho o seu filho dilecto Eça de Queirós se acaso por milagre pudesse cá voltar e assistir a esse outro suave milagre de multiplicação (dos livros, dos autores, dos agentes literários, dos jornalistas culturais, etc.) que acontece no mês de Fevereiro desde há doze anos. Estive presente pela primeira vez como escritor convidado e já dei conta das minhas impressões de participante de facto noutra publicação, razão pela qual, tomando como pretexto o importante acontecimento, me vou cingir a dois aspectos que afloraram na terra do Cego do Maio e me dão ensejo para fazer jus ao verso do poema que escrevi para o plenário “Começo a corrigir-me depois da escrita”. Já veremos a que propósito é que isto vem. Considero o ponto alto das “Correntes” deste ano a homenagem a Luísa Dacosta. A sessão inaugural no Casino da Póvoa serviu para lembrar a figura de uma professora liceal e escritora que os seus pares da minha e de outras gerações se habituaram a admirar como sendo portadora de uma “voz” cheia de ressonâncias nortenhas, especialmente empolgada ao referir-se às mulheres de A-Ver-O-Mar, que ela própria, mulher de Letras, reconhece terem sido fonte primordial de inspiração: “As minhas universidades foram as mulheres de A-Ver-O-Mar, que murcham aos trinta anos, vivem e morrem na resignação de ter os filhos e de os perder, na rotina de um trabalho escravo, sem remuneração, espancadas como animais de carga, e que mesmo afeitas, num treino de gerações, às vezes não aguentam e se suicidam (Oh! Senhora das Neves! E tu permites!) depois de um parto, quando o mundo recomeça num vagido de criança! Às mulheres de A-Ver-O-Mar devo a língua, ao rés do coloquial”. A estatura moral de Luísa Dacosta ressalta destas suas palavras, de transparência e humanidade exemplares. O nº 10 da Revista das “Correntes”, além da capa reproduzindo uma preciosa fotografia a preto e branco, contém um dossiê cujos textos são subscritos por Paula Morão, Francisco Duarte Mangas, João Pedro Mésseder, José António Gomes, Maria da Conceição Nogueira, e Luís Diamantino de Carvalho Baptista e dão a justa medida do perfil literário e humano da autora de «A Menina Coração de Pássaro». Foi bonito ver a homenageada, aos 84 anos, lúcida e desenvolta, agradecer, lendo um texto alusivo, e ouvir a estrondosa ovação de uma sala cheia onde decerto estariam, além dos escritores e outras pessoas, muitos dos seus antigos alunos e alunas, de lágrima ao canto do olho, comovidos. Merecidas palmas. Justa homenagem. Gesto que honra quem lhe deu forma e conteúdo: a edilidade poveira. Falo agora de um outro professor-escritor, José Marmelo e Silva. Nas “Correntes” cruzei-me com o poeta José Emídio-Nelson, filho do notável autor de «Sedução» cujo centenário do nascimento passa este ano. José Emídio-Nelson pareceu-me apreensivo quanto à possibilidade de a efeméride não conhecer o eco público de que o vulto da nossa literatura do século vinte é credor. (Receio infundado: as comemorações viriam a ter muita dignidade e abrangência nacional). Lamentei, na altura, não dispor de informação susceptível de compactuar (ou não) com as expectativas pessimistas de J.E.N., mas de mim para comigo fui conjecturando que nada mais tinha em arquivo para ajudar o filho poeta além das cartas que me foram endereçadas quando da correspondência que troquei com José Marmelo e Silva, cartas, comentadas por mim, publicadas em 2006 no volume «Leituras de José Marmelo e Silva», com a chancela do CEJMS, organizado por Ernesto Rodrigues. Afinal, tinha. Se os comentários a essas missivas já foram considerados mea culpa (leia-se correcção de perspectiva) no que respeita às minhas posições de crítico imberbe sobre a literatura de José Marmelo e Silva, segundo se escreve em «O Mágico pressentir do artista, Entrevistas com José Marmelo e Silva», edição de Ernesto Rodrigues, CEJMS, 2011, há a juntar-lhes uma peripécia que me permite evocar o nome de um grande senhor da cultura portuguesa, desaparecido do mundo dos vivos mas vivo como modelo de probidade, civismo e elevação intelectual, chamado Nuno Teixeira Neves. Relativamente a um texto de J.M.S. em que fui visado no Suplemento Literário do Jornal de Notícias, dirigido justamente por Teixeira Neves, nos idos de sessenta, suplemento no qual eu colaborava, procurei replicar com uma pequena peça sarcástica em que o onomástico “Marmelo” estava, isolado, na linha de tiro. Nuno Teixeira Neves devolveu-me a prosa para “emendas”. Acompanhava esta última uma carta alertando-me para os valores da solidariedade, da ética, da compostura e, naturalmente, do respeito devido a uma personalidade literária da craveira de José Marmelo e Silva. A lição não caiu em cesto roto. Envergonhadíssimo, deixei cair a “resposta” e pedi desculpa a Nuno Teixeira Neves. Assim fui aprendendo a corrigir-me depois da escrita.
Júlio Conrado
|