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As fichas

Naquele ano tive que interromper, por uns meses, em licença de parto, a actividade. Mas já tinha começado com as aulas – ia ficar com crianças de Primeira Classe, muito pequenas, ainda muito cheias de expectativas e ardendo em curiosidade. Nada tinham, ainda, contra a escola, e eu pensei que faria tudo para que nunca tivessem. Pressenti que estava ali, comigo, um grupo de promessas e de projectos. Não os deixaria fugir. Pressenti que tinha comigo olhos curiosos e rostos abertos ao que era novo. Não os deixaria fechar. Mas interromper não seria bom. Estávamos a começar, e eu a falar em partir.
Iniciávamos juntos a viagem – que em princípio seria para quatro anos – e eu teria de os deixar dentro de um mês. Falei-lhes do que seria a nossa próxima interrupção, mas de como eu regressaria depois da Páscoa. E ia ter muita pena de os deixar. Claro que protestaram, mas acabaram por aceitar a situação.
Partimos então para a fase seguinte. Estabelecemos regras de trabalho, fizemos listas de assuntos que iríamos tratar, decidimos algumas das formas de funcionar. Falei-lhes do que esperava que eles fizessem e do que precisariam de ter como princípios; ouvi-os falar do que gostariam de saber. Organizaram-se em grupos, estabeleceram relações de trabalho, sugeriram organizações de espaço e tempo, aceitámos algumas, recusámos outras, organizou-se a sala, grupos e mesas.
Reuni depois com os pais. Nessa reunião expliquei o que esperava deles e ouvi o que esperavam de mim. Definimos os nossos modos de comunicação. Estabelecemos até um código: as crianças estão imensas horas na escola, por isso é justo que seja na escola que façam o seu trabalho; não levarão nunca nenhuma ficha para fazer em casa, excepto ao fim-de-semana em que lhes pedirei uma pequena tarefa. Quando levarem alguma ficha para trabalhar, será porque alguma tolice fizeram. A ficha será o castigo, disse-lhes.
O meu filho nasceu e, meses depois, regressei à escola. Os meus alunos correram para mim, muito contentes, e, mal chegámos à sala, geometricamente organizada em filas, perguntaram-me, sem que eu dissesse nada, se podiam ir para os lugares “do costume”. Os lugares em que costumavam estar, alguns meses atrás. Disse-lhes que sim e, em minutos, reorganizaram a sala em pequenos grupos e ocuparam os seus lugares, exactamente como estavam na nossa última aula.
Depois de ter passado metade da manhã, perguntaram se não lhes ia dar fichas para fazerem. Respondi que não, e perguntei se gostavam assim tanto de fichas. Que não, nem gostavam nada, mas a outra professora dava-lhes sempre fichas para fazerem. Foi então que comecei a pensar que uma conversa entre mim e a colega que me foi substituir devia ter feito muita falta.
Mas o mais complicado foi quando, no fim dessa semana, tive reunião com os pais.
– Nem sabe a confusão que foi desde que se foi embora...
– Porquê? São miúdos óptimos. Estão entusiasmados e gostam muito de trabalhar. Que aconteceu?
– É que a professora tinha dito que não haveria fichas; que se houvesse, era só quando eles se portassem mal. E sabe o que aconteceu? Poucos dias depois passaram a levar fichas todos os dias para casa. Nós não sabíamos que todos as levavam, e então, em casa, cada um de nós começou a apertar com os filhos: o que fizeste, diz lá como te portaste mal, não te faças de inocente, alguma coisa foi... E assim, por aí, até descobrirmos que, afinal, todos levavam fichas e não era por se portarem mal. Era a outra professora que mandava!
– Mas como havíamos de saber?
– E agora, professora, eles já só vão voltar a ter fichas se se portarem mal?

Angelina Carvalho


  
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