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À espera do cânone

Descansados nas praias cosmopolitas ou nas aldeias onde ainda há leite e mel, preservemos a alma, tanto quanto possível, de conjecturas angustiantes sobre o cânone que o Outono nos reserva para preencher o vazio das expectativas.

Em pleno Solstício de Verão, enquanto mais aquietados estão os compatriotas que se puderam dar o gosto ou a necessidade de interromper a rotina laboral, veraneando, conforme os meios, dentro ou fora do país, seja-nos tolerado temperar as angústias resilientes forçando o humor, como imaginar que, até ao Equinócio Outonal, eles lograrão imunizar-se contra a “verdade” que os espera após as férias e que, ao longos dos últimos meses, políticos e politólogos de todas as órbitas e matizes não se cansaram de exigir, para valer como um cânone nacional que, definitivamente, banindo ou reformulando os mitos, ditará como deverão continuar a existir os portugueses, no futuro, em cada hora, dia e estação do ano...
Neste ínterim, portanto, que funcionará como um placebo, os veraneantes não terão o medo de existir de que fala o filósofo José Gil, não reconhecerão a auto-flagelação de que fala o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, não se interrogarão sobre a espécie de fagocitose que deriva das mitologias históricas, para apurarem realmente como somos e nos vemos, no dizer de Eduardo Lourenço, num exame que, desejavelmente, não excluirá do eu autobiográfico o privilégio reservado ao ser humano do sentimento do futuro, do que vai acontecer, como assegura o neurocientista António Damásio.
De qualquer modo, consigam ou não os portugueses em férias despojar-se das inquietações simbólico-imaginárias que geralmente invadem a rotina (produtiva ou improdutiva...) dos mais letrados, certo é que os outros, que são o povo comum, delegarão nos guias constituídos a responsabilidade de decidir que “mais do que recusar o mito, impõe-se assumi-lo, percebê-lo, criticá-lo e partir dele para a emancipação”, como sustenta o historiador Guilherme d’Oliveira Martins.
Tratando-se, pois, de mitos, isto só poderia significar a necessidade de mudar o cânone ou os cânones que vêm “mapeando” (diria Damásio) a cultura nacional desde tempos remotos, agora adaptando-os – ao menos pragmaticamente – a um simples pressuposto materialista e dialéctico, que, hoje como nunca, face à globalização rasoirante das economias e das ideias, incitaria a aceitar que não é a consciência – a moral, a ética, a solidariedade, o sentido do bem e do mal – que determina as condições materiais, mas o contrário: estas é que desenham o “mapa” da consciência.
Para o reconhecer não será indispensável evocar Marx ou Marcuse, basta olhar à volta, no país ou no mundo, para ver como até a unidimensionalidade esperada dos seguidores de Jeová, já prescrita nas Tábuas da Lei inspiradas pelo Senhor a Moisés, foi lograda com a invenção de um Bezerro de Oiro feito deus para preencher o vazio da expectativa, o qual guiaria os crentes na caminhada para a Terra da Promissão onde abundava leite e mel. Milénios passados, outros caminhantes, unidimensionalizados por novas promessas e expectativas, refundiram o Bezerro em barras, jóias e moedas, elegendo agora um Tio Patinhas para, como um novo Aarão, conduzir os caminhantes pela trilha dos negócios e da caça aos tesouros que leva ao alcance de todo o leite e mel desejáveis...
Mas se é necessário outro cânone, outra pedagogia, então teremos de nos remeter para o lugar mais adequado à informação e ao conhecimento realistas, que é a Escola (mas não a figurável como tapete rolante ou dobadoira), onde, através da Língua e da História, da pessoa e da nação, se passa ao mundo que inelutavelmente habita em nós. Como assevera o professor Vítor Aguiar e Silva, reportando-se ao ensino da Literatura, “os grandes textos literários nunca nos clausuraram num nacionalismo míope e bafiento: religam-nos à Europa e ao mundo”. E seguindo a mesma postura sobre a fixação de um cânone específico, a professora Helena Carvalhão Buescu [em «Revista de Estudos Literários», Centro de Literatura Portuguesa] acrescenta: “Isto, que não é negação da questão da identidade, implica todavia perceber que ela não pode ser tomada como coisa-em-si, pré-estabelecida e fixa. Não é possível, hoje como ontem, entender seja o que for que se queira ‘português’ sem reflectir sobre as ‘religações’ pelas quais ele reenvia para fora de si”.
Evidência: da Literatura à Escola, da Economia à Política ou da Política à Ideologia, sempre nos deparámos com a tentação de fixar um cânone. Veja-se, por exemplo quanto à Educação, como – em nome da identidade nacional, construída ou a construir – os governos de Portugal foram reformando as balizas programático-pedagógicas da Escola Pública em acordo com os ditames da ordem sociopolítica vigente. Não chegariam os dedos de uma mão só para contar as que se fizeram desde a I República até à ditadura, glorificando ontem balizas que se abjuram hoje.
Enfim, descansados nas praias cosmopolitas ou nas aldeias onde ainda há leite e mel (mau grado as notícias de que também as abelhas estão a abandonar algumas regiões do interior...), preservemos a alma, tanto quanto possível, de conjecturas angustiantes sobre o cânone que nos reserva o Outono para preencher o vazio das expectativas...

Leonel Cosme


  
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