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"Fábulas fabulosas"

O título está entre aspas por ser o mesmo do livro de Millôr Fernandes (na foto) publicado pela Editora Nórdica (1963). Com ele, a proposta é introduzir algumas reflexões acerca do que há de fabuloso na fábula como configuração textual que tem tido presença marcante na Escola e, ainda, da fabulação que constitui o trabalho docente”.

Como gênero narrativo, a fábula teria surgido no Oriente e se desenvolvido na Grécia, no século VI a.C., com Esopo (em cima). Mantida pela tradição da literatura oral, foi amplamente divulgada por Jean de La Fontaine (1621-1695). Quem não leu “A raposa e as uvas”, “A cigarra e a formiga”, etc.? Quem não é capaz de parafraseá-las? Afinal, assim como as parábolas nos contextos religiosos e os apólogos, com a personificação de objetos, a fábula tende a ser retida não apenas por ser uma narrativa curta com animais com qualidades humanas, mas pela presença de uma moral que “educa” para a manutenção dos valores hegemônicos.
As fábulas são recontextualizadas historicamente. La Fontaine (ao lado) recriou os textos de Esopo para “educar” o homem de sua época. Monteiro Lobato (1882-1948) promoveu adaptações que fizessem mais sentido na realidade brasileira. E a fábula permanece viva como manifestação ideológica: a formiga deve trabalhar arduamente para ter um inverno tranqüilo, objetivo que a cigarra não alcançará por falta de “investimento correto”.
Entretanto, esta, que talvez seja a mais famosa das fábulas, tem recebido outros finais, quer na perspectiva da caridade cristã, quer na da disputa ideológica secular. Um exemplo: tendo sido descoberta por um produtor, a cigarra está a caminho de Paris, perguntando à formiga trabalhadora se deseja algo de lá. A resposta contém um palavrão endereçado a La Fontaine. A nova moral é: “aproveite sua vida, saiba dosar trabalho e lazer, pois trabalho em demasia só traz benefício em fábulas do La Fontaine”.
Há, ainda, elaborações críticas como as fábulas fabulosas do escritor/humorista Millôr Fernandes, em que narrativa e moral rompem com as expectativas dos leitores. “Hierarquia” é um exemplo:
Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha acabado de brigar com a mulher e esta lhe dissera poucas e
boas. Eis que, subitamente, o leão defronta com um pequeno rato, o ratinho mais menor que ele já tinha visto. Pisou-lhe a cauda e, enquanto o rato forçava inutilmente pra escapar, o leão gritava: “Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe; não conheço na criação nada mais insignificante e nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato”. E soltou-o.
O rato correu o mais que pôde, mas, quando já estava a salvo, gritou pro leão: “Será que V. Excelência poderia escrever isso pra mim? Vou me encontrar com uma lesma que eu conheço e quero repetir isso pra ela com as mesmas palavras!”
Moral: afinal ninguém é tão inferior assim. Submoral: nem tão superior, por falar nisso.

Há, enfim, não apenas fábulas diversas, mas diferentes movimentos de apropriação. Citando Marx (capítulo VII de «O Capital»): o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele fabula sua construção antes de transformá-la em realidade. Histórias curtas com animais personificados favorecem, pela via do imaginário, deslocamentos menos sujeitos às interdições comuns. Mas, como todos os outros textos, dependem da proposta de trabalho dos professores e da recepção dos alunos, nas situações concretas da sua interlocução.
Moral: as fábulas só podem ser dimensionadas no contexto das fabulações do ensino.

Raquel Goulart Barreto


  
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