Se tivéssemos um Ministério da Educação que entendesse a Escola Pública como uma necessidade crucial, e não um Ministério das Finanças que a remete para a coluna das despesas, o rumo das coisas seria possivelmente outro.
Mais do que episódios circunscritos, o fim anunciado da Área de Projecto, do Estudo Acompanhado e do par pedagógico na Educação Visual e Tecnológica, bem como o desinvestimento no Desporto Escolar, terão de ser lidos como expressão de um programa de acção política que passou a ser definitivamente conduzido pelo Ministério das Finanças. Daí que as medidas divulgadas não possam ser compreendidas apenas em função da urgência de uma resposta à crise económica em que o país vive. A crise usa-se, mais uma vez, como um pretexto que, neste caso, serve para tornar aceitável uma visão minimalista da Escola Pública, do seu governo e dos seus compromissos. Trata-se de uma questão que adquire particular importância no seio do espaço ideológico que o Partido Socialista foi construindo, pelo modo como a Escola Pública tem vindo a assumir-se como referência no âmbito do processo de demarcação do PS face aos partidos situados à sua direita, o que constitui, afinal, uma das operações estrategicamente mais decisivas para manter a sua ala e os seus eleitores de esquerda. A questão adquire tanta ou mais importância quanto se sabe que, por causa disso, e ao contrário do PSD e do CDS/PP, o PS não pode arriscar-se a defender, pelo menos de forma audível, que toda a Escola é pública desde que possua um público a quem presta um determinado serviço educativo. Ainda que seja um partido bastante diferenciado, quer do ponto de vista ideológico, quer do ponto de vista dos interesses que confluem na sua direcção, importa reconhecer, como Sócrates e, antes, Mário Soares, o fizeram tão bem, que há fronteiras discursivas que não convém atravessar, mesmo que, por fim, os discursos no interior do campo que essas fronteiras balizam sejam entendidos somente como instrumentos de jogos florais que contribuem para que uma relação demasiadas vezes contraditória entre os discursos e os actos políticos possa manter-se nos limites da plausibilidade. É de acordo com esta estratégia que se decreta o fim do Estudo Acompanhado e da Área de Projecto, o fim do par pedagógico em EVT e o ocaso do Desporto Escolar, alegando a necessidade de se resolver o problema da despesa do sector público do Estado. Assustados pela pressão dos agiotas, pelo peso da dívida e dos seus juros e sem razões visíveis para acreditarmos que aquelas áreas, aquele par e aquela valência são contributos decisivos para que a Escola Pública responda aos compromissos educativos que a justificam, calámo-nos e acabamos por um indiferente encolher dos ombros. Não eram os próprios professores que desdenhavam do valor educativo daquelas áreas? Alguma vez os alunos sairiam para a rua a defendê-las ou a defender a importância dos dois professores em EVT? O que vale, na prática, o Desporto Escolar? Sendo estas questões legítimas, importa reconhecer que este não é, para já, o problema a discutir. Daí que seja necessário perguntar em que estudos credíveis e pareceres independentes se basearam. Que acontecimentos ocorreram entretanto, para que seja um governo do mesmo partido que criou as áreas curriculares não disciplinares a promover o seu funeral? O que aconteceria se as medidas de política educativa se baseassem, somente, em indícios? Seria aceitável? É possível construir uma política educativa credível através de decisões erráticas e contingentes, que correspondem mais aos interesses do momento do que a uma visão estratégica assente em perspectivas e princípios relativamente sólidos? Se tivéssemos um Ministério da Educação que entendesse a Escola Pública como uma necessidade crucial, do ponto vista político, social, cultural e económico, e não um Ministério das Finanças que a remete para a coluna das despesas, o rumo das coisas seria possivelmente outro. A Área de Projecto e o Estudo Acompanhado orientar-se-iam em função de outros propósitos e de outras dinâmicas em escolas com autonomia suficiente para tomar decisões fundamentadas neste âmbito. Ainda que sejamos os primeiros a reconhecer que, em muitos casos, ambos constituíam mais um problema do que uma solução, não podemos deixar de perguntar o que aconteceria se se aplicasse a mesma receita às restantes áreas curriculares... Por outro lado, e num debate que um de nós animou no decurso de uma aula, deparámo-nos com uma dezena de estudantes que, provenientes de escolas distintas, se referiram à experiência vivida na Área de Projecto, no âmbito do Ensino Secundário, como um dos acontecimentos educativos mais marcantes das suas vidas. Em que ficamos? Não estamos perante um mundo demasiado plural para ser lido de forma tão pobre e linear? O mesmo se aplica ao problema do par pedagógico em EVT, cuja história e tradição curriculares se ignoram, sem se justificar em que factos e perspectivas uma tal decisão encontra suporte e desprezando-se até as experiências e os projectos mais significativos que se têm vindo a desenvolver nesta área. Quanto ao Desporto Escolar, chama-se a atenção, apenas, para o potencial formativo de um tal projecto e lembra-se a profunda e insustentável contradição que se estabelece entre a decisão relativa a tal valência e os argumentos que se foram invocando para sustentar a importância do programa da Escola a Tempo Inteiro, nomeadamente os que dizem respeito à necessidade de as escolas se afirmarem pelas oportunidades educativas que proporcionam, ampliando os seus interesses e permitindo-lhes o usufruto de experiências pessoais e sociais significativas. Qual é o prazo de validade de um tal discurso? Para o Desporto Escolar, pelos vistos, chegou ao fim. E para a Escola a Tempo Inteiro, quando é que acaba?
Ariana Cosme e Rui Trindade
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