Na bucólica paisagem, os toscos casebres abrigavam famílias fustigadas pelo abandono de séculos, morava um povo submisso aos desígnios de Deus e dos “coronéis” locais. Poderia faltar o pão, mas sobravam piolhos e preconceitos.
Nos idos de setenta, fui trabalhar numa escola do Portugal profundo, chão de terra, paredes-meias com uma corte de gado. Quarenta e oito maravilhosas crianças, mãos calejadas do uso da enxada, senhoras de segredos que eu sequer imaginara. Trocámos saberes: ensinaram-me como conduzir ovelhas e a produzir queijo; ensinei-lhes os saberes dos livros que eles não tinham podido ler. Juntei uma pequena biblioteca, enquanto eles me abriam páginas do livro da Natureza. Acatávamos a recomendação do Comenius de levar a escola para debaixo da árvore (ou para debaixo da mangueira, como faz o educador Tião Rocha). E, assim, fomos aprendendo uns com os outros, mediados pelo mundo… até ao dia em que me pediram que lhes dissesse de onde vinham os bebés. Levei-lhes dois livrinhos de uma editora católica, que abordavam o assunto em pezinhos de lã. Eu sabia o caminho que pisava. Na bucólica paisagem, os toscos casebres abrigavam famílias fustigadas pelo abandono de séculos, morava um povo submisso aos desígnios de Deus e dos “coronéis” locais. Poderia faltar o pão, mas sobravam piolhos e preconceitos. Os meus alunos aprenderam aquilo que a ignorância havia infectado de malícia. Expliquei-lhes aquilo que os seus pais sentiam vergonha de explicar. Mas, muito cedo, aprendi que o maior aliado de um professor é o outro professor e que o maior inimigo é, também, o outro professor. No dia seguinte, a escola estava vazia e um padre estava à minha espera. Disse-me que algumas professoras tinham espalhado o boato de que o novo professor tinha posto crianças nuas a imitar relações sexuais. A população armou-se de foices e gadanhos e foi ao meu encontro. Escapei do linchamento por acaso, porque, nesse dia, fui por outro caminho. O padre protegeu-me da turba furiosa, dando-me guarida na sua residência. E, à noite, com a sua providencial ajuda, pude reunir os pais dos meus alunos. Na aldeia, não havia energia eléctrica. A luz das tochas e das velas projectavam sombras nas paredes esburacadas, acentuavam os contornos dos rostos furibundos que me rodeavam. Pedi às crianças que falassem. Elas disseram que nada daquilo que as professoras disseram era verdadeiro, que o professor apenas tinha falado de dois livros, livros que vieram da igreja. Desmontada a trama urdida pelas professoras, os pais exageraram nos pedidos de desculpa. A partir desse dia, com generosidade (e remorsos?) ofereciam-me ovos, carne de porco, queijo fresco…. Também me ofereceram casa gratuita, para lá ficar a viver. Mas decidi ir embora. Aqueles aldeãos mantiveram-se súbditos dos senhores das terras e das almas. E a simplicidade dos costumes era terreno fértil para o fomento da ignorância. Razão tinha Ivan Illich quando disse haver quem medisse o seu êxito pelo fracasso dos demais. Também na Educação, a ignorância é condimento da sanha destrutiva contra qualquer projecto que escape à mediocridade reinante. A Escola da Ponte que o diga… Hoje, os meios são mais sofisticados, mas em nada se distinguem dos de antigamente. Pseudónimos e anonimatos protegem os que atiram a pedra e escondem a mão. E a deturpação da realidade – à mistura com uma ponta de verdade, para a mentira ser segura – produz os mesmos nefastos efeitos. Não me surpreendeu o facto de o povo português ter eleito Salazar como o cidadão mais ilustre da sua História. Em Portugal, a Ditadura prolongou-se por quarenta e oito tenebrosos anos. Depois, os dinheiros da Europa travestiram-na de Democracia. Hoje, são inúmeros os supermercados e escasseia a cidadania; dispomos de novas estradas para irmos a lugar nenhum.
José Pacheco
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