O teólogo Padre Mário de Oliveira é uma consciência vigilante, vivendo não só à maneira de Espinosa do “amor intellectualis Dei”, mas também de uma fé que santifica porque nos faz mais solidários e fraternos (a dificuldade da mensagem de Jesus está aqui e não em rezar terços, ou venerar santinhos).
Acabo de reler um livro do teólogo Padre Mário de Oliveira. Este intitula-se Quando a fé move montanhas. O seu autor é um homem de fé, mas de uma fé que se confunde com um realismo insubornável diante do “mundo da vida”, diante das injustiças em que o nosso mundo é fértil, designadamente aquelas que são “programadas” pelo Ter e pelo Poder. Mário de Oliveira é uma consciência vigilante, vivendo não só à maneira de Espinosa do “amor intellectualis Dei”, mas também de uma fé que santifica porque nos faz mais solidários e fraternos (a dificuldade da mensagem de Jesus está aqui e não em rezar terços, ou venerar santinhos). Para ele, a fé não nos leva a acreditar em dogmas (autênticos disparates) da Imaculada Conceição, da infalibilidade pontifícia, do pecado original e nos quase-dogmas (disformes e grotescos) do milagre de Fátima e do celibato sacerdotal. A fé, para o Padre Mário de Oliveira, é uma versão do cristianismo primeiro, quando o cristianismo era a “religião dos escravos, protesto, mesmo se impotente, contra a ordem estabelecida, esperança no advento do Reino”. A fé, no Padre Mário de Oliveira, é transcendência, mas que não seja alienação, isto é, liberta de qualquer conotação com a ideologia do fundamentalismo neo-liberal ou de qualquer outro pensamento único. A transcendência, em Mário de Oliveira, é a negação de toda e qualquer espécie de determinismo. Em sintonia, aliás, com a interrogação de Jesus: “Homens de pouca fé, por que duvidais?”. Ao lê-lo (e nem sei bem porquê) muitas vezes sou tentado a compará-lo com o Roger Garaudy que, na década de 70, na companhia de Teilhard de Chardin, me surgia com uma extraordinária energia de irradiação espiritual. A quente luminosidade das suas imagens, o ardor da sua emoção e a helénica serenidade da sua filosofia fizeram de Garaudy um autor que não mais esquecerei – como não esqueço o entendimento atilado e cáustico, bem ao jeito daquele filósofo francês, do Padre Mário de Oliveira. Por isso, o livro Quando a fé move montanhas deverá transformar-se num vade mecum para os que pretendem repensar o cristianismo, visando apresentá-lo de acordo com as mais sérias aspirações das mulheres e dos homens do nosso tempo. Como pode defender-se, hoje, o pecado original? O Padre Mário de Oliveira põe a nu, neste livro, o absurdo de um Deus, infinitamente justo, nos acusar de um mal que nunca praticámos: “Acontece, porém, que hoje sabemos que o pecado original nunca existiu, nem sequer houve um casal inicial do qual todos os seres humanos provêm (...). É verdade que tudo isso vem na Bíblia, no livro do Génesis, mas sabemos hoje que é um mito das origens, uma forma poética, simbólica de relatar o começo da Humanidade (...). Por isso, tudo o que a catequese oficial da Igreja continua a ensinar a este propósito é aldrabice. E o chamado dogma da Imaculada Conceição de Maria faz parte dessa aldrabice. A verdade à luz da Teologia cristã e do Evangelho de Jesus é que todos fomos concebidos em graça, em amor, em relação com Deus e estamos chamados a abrir-nos progressivamente uns aos outros, umas às outras, num amor cada vez maior e mais desinteressado” (p.17). De facto, o pecado original; a virgindade de Maria, antes e depois do parto – são dogmas em que o achincalhe à inteligência sobe aos tons mais homéricos. Demais, propagados por padres que são mais do mesmo, ou seja, incapazes de criticar, com honestidade e coragem, as determinações que chegam de Roma e que reduzem o cristianismo ao nível infantil de uma filosofia pré-crítica. Roger Garaudy, no seu Marxisme du XXème Siècle, refere que o cristianismo criou uma dimensão nova do ser humano: a de pessoa humana, a de um ser que tem como atributo essencial a transcendência. Ora, “o encontro com a transcendência, ou antes, a irrupção da transcendência, não é uma experiência privilegiada e nada tem de teológico ou religioso, não é uma interrupção da ordem natural, por uma intervenção sobrenatural, mas é a experiência mais quotidiana, a experiência especificamente humana: a da criação” (pp. 113-114). A transcendência é a dimensão profética da vida e tem como radical fundante a liberdade. Mas como é possível a profecia, na Igreja Romana, se os profetas, como o Padre Mário de Oliveira, se vêem rodeados pela intolerância e a incompreensão da classe dominante da Igreja, dita Católica? E se nesta mesma Igreja, dita católica, há uma obediência cega à autoridade? O Papa Joseph Ratzinger afirma que “o essencial da fé é que nela não me deparo com algo inventado; na fé, o que vem ao meu encontro supera em muito tudo quanto nós, os homens, somos capazes de pensar” (Joseph Ratzinger, Deus e o Mundo, Tenacitas, Coimbra, 2005, p. 31). Só que na fé oficial da Igreja Católica são em demasia as invenções, como aquelas que acima já citámos e outras, como a Ressurreição que se confunde com a reanimação do cadáver de Jesus crucificado, quando “o relato evangélico (assim no-lo ensina o Padre Mário, no livro Quando a fé move montanhas) de São João que fala disso é teológico e tem outra leitura/interpretação. Quando falo de Mistério, não me refiro a uma realidade incompreensível, mas a uma Realidade-escondida-que-se-nos-revela-e-nos-transforma, à medida que se nos revela”(p. 148). Daí que o Padre Mário se considere ateu: “ Também eu sou ateu, mas (...) sou ateu apenas de todos os deuses que se alimentam de gente. Por isso, posso dizer que sou ateu porque creio em Deus, no Deus de Jesus de Nazaré, o Crucificado/Ressuscitado” (p. 49). Se não laboro em erro grave, julgo que o Padre Mário poderia fazer suas estas palavras de Roger Garaudy, em Parole d’Homme: “De que fé se trata? Fé em Deus? Fé no homem? É um falso problema: uma fé em Deus que não implicasse a fé no homem seria uma evasão e um ópio; uma fé no homem que não se abrisse ao que no homem supere o homem, mutilaria o homem da sua dimensão especificamente humana: a transcendência” (p. 225). A crença no Deus que Jesus nos ensinou é também uma crença no Homem, porque (volto ao Padre Mário), “enquanto ressuscitado, Jesus é o ser humano com o Espírito Santo dentro” (p. 61). Não surpreende, por isso, que o autor deste livro viva “em estado quase contínuo de escuta do Deus vivo, o qual se nos revela e nos fala, nos acontecimentos de que são feitas todas as nossas vidas e todas as vidas de todas as pessoas e de todos os povos do mundo” (p. 69). Não é fácil reduzir a meia dúzia de linhas uma crítica a qualquer um dos livros do Padre Mário de Oliveira, mas considero uma decisão ética ler cada um deles, com atenção e respeito. Porque se trata de um teólogo informado e de um homem culto e de alguém que é capaz de dar a própria vida pelos valores em que acredita (como já o provou à saciedade). Se aqui é possível uma nótula de carácter pessoal, deixem-me que confesse que aprendi com o Padre Mário a perceber que não há separação entre o sagrado e o profano, porque (sem qualquer assomo de panteísmo) Deus está em tudo! E acabo de aprender, após a leitura deste livro, que a ressurreição de Cristo é ruptura e superação de um egoísmo acanhado, insignificante e anúncio de que, na nossa vida, tudo é possível, ou seja, o possível faz parte do real.
Manuel Sérgio
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