Página  >  Edições  >  N.º 174  >  O tratado de Lisboa e a realidade europeia e mundial

O tratado de Lisboa e a realidade europeia e mundial

No dia 13 de Dezembro de 2007 foi assinado em Lisboa o Tratado Reformador da União Europeia, acto que, para os representantes dos estados subscritores, é certamente encarado como um contrapeso à derrota política resultante da rejeição da primeira versão deste acordo "constitucional" nos referendos de França e da Holanda.
É o que explica que, perante o espectro de novas rejeições e frustrando as expectativas criadas pelas promessas eleitorais, todos se empenhem (governo, partido do governo e a maior parte da oposição, assim como a Igreja Católica) em rejeitar a hipótese de sujeição do tratado a referendo popular, optando pela sua ratificação pelos parlamentos nacionais. Certamente para silenciar todas as vozes discordantes os apoiantes entusiastas do tratado preparam-se para aplicar a lei antidemocrática que impõe o depósito, junto do Tribunal Constitucional, de documentação comprovativa do registo de pelo menos 5000 militantes como condição da existência legal de qualquer partido político!
Em face desta atitude muitos perguntarão: por que razão a maioria dos responsáveis políticos europeus recusam obstinadamente o referendo de um tratado que, no seu artigo 2.º, n.º 1., proclama que a União Europeia tem por objectivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos, ao mesmo tempo que, no n.º 2 do mesmo artigo, compromete-se em proporcionar aos seus cidadãos um espaço de liberdade, de segurança e de justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas? Objectivos cuja concretização faz decorrer do desenvolvimento sustentável do continente, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, no contexto de uma economia social de mercado altamente competitiva tendo como meta o pleno emprego e o progresso social, assim como dum elevado nível de protecção e de melhoramento da qualidade do ambiente?! Postura, por sua vez, alegadamente reforçada pelo compromisso da União Europeia em combater a exclusão social e as discriminações, através da promoção da justiça e da protecção sociais, a par da coesão económica, social, territorial e da solidariedade entre os estados-membros, como estabelece o n.º 3 do artigo citado?!
E a realidade? Em que se tem verdadeiramente traduzido a política económica, social e internacional da União Europeia e dos governos dos seus estados membros?
No desenvolvimento económico e no aumento do bem-estar da população europeia? No apoio solidário ao desenvolvimento económico e social dos povos e países carenciados dos outros continentes?
Na melhoria da qualidade do ambiente?
Ou na destruição de sectores inteiros da economia europeia, na desertificação generalizada de extensas áreas industriais e agrícolas nos diversos países em resultado do encerramento de empresas industriais e de explorações agro-pecuárias, no aumento vertiginoso do desemprego de milhões de cidadãos, cujos efeitos dramáticos em termos sociais não conseguem sequer ser paliados pelos cada vez mais depauperados sistemas de segurança social?
Não serão estes os resultados da economia de mercado altamente competitiva que a União Europeia pretende erigir em modelo de desenvolvimento, cada vez mais sob pressão do dumping social banalizado pela China e outros países sob instigação americana?
Na realidade estes atentados aos direitos sociais conquistados pela luta plurissecular dos trabalhadoras da Europa e do mundo são prolongados a nível externo pelo ataque generalizado às nações, enquanto expressão política da comunidade dos cidadãos e, nessa qualidade, guardiãs dos seus direitos, acção destruidora que tem sido levada a cabo através da intervenção militar contra os povos europeus, como no caso tristemente emblemático da ex-Jugoslávia (ameaça que, de resto, paira sobre qualquer país em que este tipo de intervenção vier a revelar-se necessária para assegurar a "ordem" da União), ou por intermédio do despojamento político sistemático dos estados nacionais da sua soberania, transformando-a em subsidiária dos ditames da União Europeia, como tem vindo a ser prática crescente das suas instâncias face aos estados membros e passará a ser banalizada pela aplicação dos artigos 3.º-A e 3.º-B do Tratado.
Isto sem esquecer o anúncio da utilização repressiva da biologia pelas autoridades fronteiriças no combate à imigração de cidadãos não europeus[1], cujo fluxo aumenta à medida que a política imperialista da União Europeia (e dos Estados Unidos) contribui para o aumento brutal da dependência e da miséria nos países e continentes de origem da esmagadora maioria dos migrantes: África, Ásia e América Latina[2].
Perante este cenário, torna-se cada vez mais claro que a defesa dos interesses dos cidadãos da Europa e de todo o mundo só pode resultar da sua acção independente e solidária à escala nacional e internacional.

[1] Testes de ADN para comprovação do parentesco invocado como fundamento da reunião familiar, enquanto expressão das medidas previstas no n.º 2 do art.º 2.º do tratado em matéria de controle da fronteira externa, de asilo e de imigração.

[2] Recorde-se, a propósito, a recente cimeira Europa - África de Lisboa e o anúncio do seu abandono pelo presidente senegalês em protesto contra a prevalência dos interesses europeus e americanos em detrimento dos africanos.

José Marques Guimarães


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

José Marques Guimarães
Universidade Aberta, Lisboa
José Marques Guimarães
Universidade Aberta, Lisboa

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo