Página  >  Edições  >  N.º 173  >  Malefício e doença na terapia tradicional

Malefício e doença na terapia tradicional

Pode dizer-se que na tradição popular portuguesa o mal surge como decorrente não de um qualquer mau funcionamento orgânico, mas de algo que existe para lá, e independentemente, da sua acção manifesta. Algo muitas vezes entendido, causal e moralmente, como penitência ou castigo divino, mas que, em termos pragmáticos, se entende normalmente como acção de um espírito ou ente mais ou menos ignoto, desencadeador de uma agressão que, muitas vezes, podemos considerar como mágica.
Se o corpo possui uma anomalia funcional ela surge, portanto, como provocada por uma entidade de alguma forma maléfica que degrada o corpo e pode levar ao seu disfuncionamento definitivo. Entidade ou princípio energético sediado no seu interior, aí tendo penetrado de uma qualquer forma, normalmente através de um dos orifícios de que o mesmo está dotado.
E neste a boca constitui naturalmente o mais frequente dos locais de penetração. É aliás por isso que ainda hoje se faz o sinal da cruz sobre a boca quando, por razões funcionais, se abre a mesma desmesuradamente ou durante um tempo considerável. Principalmente às crianças; agora e sempre as mais vulneráveis.

Jasus bente, Divine sacramente, Pr'á boquinha, Do mê menino bente

Se quisermos assumir uma concepção popular poder-se-á dizer que o mal é um bicho que infesta o corpo e o devora no seu interior!
Sendo assim a necessidade de irradicar do corpo o ente maléfico, aí implantado, dá corpo a grande parte das técnicas terapêuticas tradicionais, hoje em desaparecimento, mas frequentes em tempos idos, não muito distantes.
Práticas tendentes a sugar a doença do corpo do paciente, cuspindo fora a influência maligna, existem na América do Sul, na Califórnia, entre os Esquimós ou os Aborígenes da Austrália.
De facto, chupar a parte doente para fazer sair o mal, constitui um modelo de tratamento arcaico que, na sua forma mais simples, se encontra um pouco por todo o mundo. Entre nós, por exemplo, chupa-se o dedo da criança, quando ela se queixa. Mesmo os adultos chupam o dedo e o local da dor (principalmente se decorrente de picada ou mordedura) num impulso quase instintivo de protecção.
Do mesmo modo as ventosas constituíam, e até certo ponto ainda constituem, uma técnica frequente destinada aliviar as dores reumáticas e outras análogas.
Mas não chega irradicar do corpo o ser, ou princípio energético, maléfico. É preciso saber para onde! E neste onde estão consubstanciadas especialmente duas exigências. Em primeiro lugar garantir que o mesmo não vai afectar alguém que, estando próximo, seja provavelmente um ente querido ou um parente.
Em segundo, que a irradicação seja feita de forma definitiva. Seria contraprocedente que o processo acabasse por se inverter. A percepção popular entende as recaídas como particularmente funestas. E não deixa de ter razão para isso!
Portanto, o mal deve ser enviado ou para um local que o mesmo não possa abandonar, tão distante que não pressuponha retorno ou, ainda, para um hospedeiro dispensável ou que, sendo desconhecido, não se equacione à partida, em relação ao mesmo, qualquer sentimento de solidariedade.
Neste sentido são inúmeros os destinos para onde o mal é pretensamente esconjurado, constituam estes algo determinado e bem definido, constituam algo indefinido, abstracto, situado para lá das fronteiras do mundo conhecido e habitual; um verdadeiro limbo onde proliferam as energias caóticas. Muitas vezes o esconjuro pretende apenas reenviar o mal para o seu local de origem, visto de alguma forma como o caos primordial berço de todas as entidades positivas e negativas.
É assim que a "íngua" deve ser esconjurada para as estrelas, o "luado" de volta para a Lua, as "sezões" para as águas correntes, o "ógamento" para um cão, a "tosse" para um pinheiro, a "gota" para um carvalho, a "apoplexia" para o mar, o "terçogo" ou "terçolho" para a primeira pessoa que se encontrar de manhã.
Mas o mal pode não se irradiar para nenhures e simplesmente, através de um acto de magia simpática, aprisionar-se de forma tão criativa como singular.
No Ribatejo, por exemplo, o "mal de cabelo" (leia-se queda de cabelo) trata-se colocando uma madeixa de cabelo dentro de um pano limpo e colocando-se o mesmo num bico de piteira ou numa crescença de silva, ficando o mesmo aí aprisionado!
A prisão do mal em qualquer substância, que funciona assim como um fetiche, existe em muitas das tradições da terapêutica tradicional do nosso país. Por exemplo a "gota" de que já falámos, também denominada "benzinho de deus", é expurgada aparando-se as unhas dos pés e das mãos. Tais resíduos orgânicos embrulham-se então num papel e vão ser colocados num buraco de um carvalho.
Estes rituais quase sempre incluem atitudes simbólicas de rejeição da doença ou malefício. Atirar o mal ou as substâncias que o contém ou com ele contactaram por detrás das costas por cima do ombro constitui uma acção extremamente frequente.
O mesmo acontece com atirar para detrás das portas a água ritual, voltar ostensivamente as costas ao local onde a acção ritual se processou, quebrar uma vasilha (normalmente de barro) bem como a proibição de voltar a passar nesse local durante um espaço de tempo considerável.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 173
Ano 16, Dezembro 2007

Autoria:

Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém
Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo