Manuel Carlos Silva, antropólogo e investigador social, a propósito da pobreza em Portugal:
A desigualdade social tem aumentado ao longo dos últimos anos em Portugal. Cerca de vinte por cento da população portuguesa vive em situação de pobreza, calculando-se ainda que um terço da população activa seria considerada pobre se vivesse exclusivamente dos rendimentos do trabalho. Os números do Instituto Nacional de Estatística confirmam, além disso, que a diferença de rendimento dos mais ricos é 7,5 vezes superior à dos mais pobres, a maior a nível da União Europeia. Para aprofundar este tema e procurar fazer uma caracterização mais detalhada das suas causas e implicações, entrevistamos neste número da PÁGINA Manuel Carlos Silva, antropólogo, professor do Departamento de Sociologia da Universidade do Minho (UM) e director do Centro de Investigação em Ciências Sociais, cuja principal área de investigação se centra precisamente sobre as desigualdades sociais. Director da revista "Configurações", publicação editada pelo Núcleo de Estudos em Sociologia da UM, na qual se reúnem trabalhos académicos inéditos na área das ciências sociais, este investigador tem coordenado regularmente diversos projectos científicos em áreas como a xenofobia, igualdade de oportunidades, pobreza e exclusão social, sendo autor de numerosos artigos em revistas nacionais e internacionais e de diversos livros sobre estes e outros temas, tanto a título individual como colectivo. Foi distinguido com o prémio Sedas Nunes, atribuído por um júri internacional, pela melhor obra produzida em Ciências Sociais entre 1994 e 1996, com base na obra intitulada "Resistir e Adaptar-se ? Constrangimentos e Estratégias Camponesas no Noroeste de Portugal", publicado pelas edições Afrontamento.
As estatísticas confirmam que a desigualdade social é um fenómeno crescente em Portugal. É possível fazer uma caracterização deste problema?
Talvez seja útil, antes de mais, fazer a distinção entre o conceito de desigualdade social face ao de exclusão social ? quanto a mim, prefiro utilizar o conceito de desigualdade social, ou de desigualdades sociais, uma vez que é mais abrangente que o de exclusão social. É certo que ambos dão conta das desigualdades de acesso a bens e recursos de toda a ordem. Mas enquanto que a desigualdade social é um conceito mais abrangente, porque abarca um nível socioestrutural, um nível organizacional e um nível interactivo, nos quais se manifestam as diversas formas de desigualdade social, o termo exclusão social tem uma conotação mais próxima dos autores clássicos, particularmente de Max Weber, definindo a ideia de estar dentro ou fora de um determinado círculo, estatuto ou qualquer outra categoria social. É certo que muitos não gostam do termo desigualdade social, porque "põe o dedo na ferida" e coloca em questão o tipo de sociedade que temos. Não só a do passado, mas também a do presente. Nesse sentido, penso que quem gosta de falar de equidade, de justiça, etc. não terá muita vontade de utilizar o termo desigualdade social. Porque, de facto, Portugal é um dos países em que a desigualdade social é mais flagrante, onde a diferença entre os 10 por cento mais ricos e os 10 por cento mais pobres é maior. E isso é um indicador que espelha bem a nossa diferença relativamente a outros países europeus, nomeadamente ao nível dos bens económicos, dos bens de produção e sobretudo do rendimento.
Acha que é possível caracterizar essa evolução, de forma relativamente sucinta, ao longo dos últimos 30 anos?
Logo após o 25 Abril, num curto espaço de tempo situado entre 1974 e 1976, o rácio do rendimento entre capital e trabalho inverteu-se. Enquanto que até essa altura o capital detinha cerca de 57 por cento do rendimento, a percentagem inverteu-se precisamente na proporção contrária, isto é, o rendimento do trabalho passou para os 56/ 57 por cento. Mas essa relação foi lentamente voltando à situação anterior à do 25 Abril, particularmente ao longo dos anos 80. Deste ponto de vista, os trabalhadores tiveram um curto período de tempo em que, de uma maneira geral, aumentaram o seu poder de compra. Actualmente, uma parte substancial dos empregados assalariados portugueses vive abaixo do limiar da pobreza relativa. Afirma-se muitas vezes que estas pessoas estão em "risco de pobreza", mas isso é uma forma eufemística de designar a sua situação, porque eles estão, de facto, na pobreza.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística, cerca de um terço da população activa em Portugal seria considerada pobre se vivesse exclusivamente dos seus rendimentos do trabalho?
E cerca de outros 27 ou 28 por cento são idosos pobres. Nesse sentido, haverá, no total, entre 60 a 70 por cento de pessoas a viver em pobreza relativa, isto é, com um rendimento inferior a metade do salário médio auferido em Portugal ? uns situam-no nos 360 euros, outros nos 380 euros. Seja como for, em qualquer das situações são pessoas que estão abaixo deste limiar. E isso significa que vivem com muitas dificuldades e sobrevivem a custo. Muitas vezes com a ajuda de familiares ou recorrendo ao cultivo da horta, que ainda hoje constitui, em muitos casos, uma reserva de retaguarda que permite ir sobrevivendo. Ou seja, vivem-se situações deveras dramáticas.
Quais os motivos que, na sua opinião, têm contribuído para o agravamento das desigualdades sociais em Portugal?
Antes de mais porque o modelo de crescimento existente em Portugal, cujos responsáveis são não só os agentes económicos mas também os políticos, assenta numa lógica de acumulação e de enriquecimento a curto prazo, procurando sacar o máximo possível dos trabalhadores, não percebendo que a médio prazo seria muito mais interessante ter trabalhadores motivados com rendimentos razoavelmente satisfatórios. Mas esta não é a prática corrente, em particular no meio empresarial: uns porque não estão interessados em aumentar os salários, outros porque não modernizam o aparelho produtivo, outros ainda porque não têm formação adequada à gestão de pequenas e médias empresas. É certo que as grandes empresas ? representadas pelo grande capital ? têm habitualmente trabalhadores mais bem remunerados do que a média, sobretudo aqueles que têm qualificações mais elevadas, mas acabam por explorar muitas vezes mão-de-obra quando contratam sub-empreitadas a empresas mais pequenas. Ainda recentemente soube do caso de um centro de emprego que contratualiza trabalhadores a menos de um euro à hora? São casos excepcionais, mas ainda assim existem.
Não considera que o poder político tem uma responsabilidade maior do que o poder económico nesta situação? Afinal, é o poder político que regulamenta as leis do trabalho?
Ou que as desregulamenta e não permite a regulamentação... De facto, deveria caber ao poder político o papel de regular a desigual relação de forças entre os trabalhadores e o patronato, privilegiando a contratação colectiva em detrimento dos contratos individuais de trabalho, porque se sabe que as pessoas em condições desfavorecidas são capazes de aceitar um emprego por um menor salário. Mas nem os governos anteriores do Partido Social Democrata e CDS-Partido Popular, nem o próprio governo do Partido Socialista, criaram condições para a revisão do código de trabalho.
Políticas assistencialistas não reduzem níveis de pobreza
Portugal tem seguido políticas eficazes de redução da pobreza ou aposta mais numa política de carácter assistencialista? Que tipo de políticas é que têm sido seguidas neste campo?
Houve algum avanço na redução da pobreza absoluta e em algumas franjas da pobreza relativa, nomeadamente através da implementação do rendimento mínimo garantido ? agora denominado rendimento mínimo de inserção. Contrariamente ao que sucedia no passado, em que largos sectores da população não tinham qualquer tipo de protecção social, estes instrumentos vieram possibilitar o acesso aos bens mínimos de consumo e permitem a sobrevivência de muitas famílias. Mas é bom que se diga que este instrumento de protecção social, introduzido pelo governo do António Guterres, resulta de uma directriz emanada pela União Europeia e que a sua implementação pecou por tardia. Além disso, os valores atribuídos são dos mais baixos da Europa e não cumprem de forma eficaz o objectivo a que se propõem.
Confirma, então, que têm um carácter eminentemente assistencialista?
Em teoria, o Estado Providência actual, e concretamente o governo socialista, não assume uma posição assistencialista, assume estas medidas como um direito de cidadania. Como tal, pode considerar-se que as medidas que têm sido conduzidas neste domínio não são de teor conservador e organicista ? ou corporativo, como acontecia no Estado Novo, que de facto eram de carácter assistencialista. No entanto, o mais grave desta situação, na minha opinião, é o facto de as organizações que intervêm como mediadoras desta prestação terem, elas sim, uma visão assistencialista, partindo do princípio de que se os pobres não encontram por si próprios meios de subsistência alguma culpa ou responsabilidade lhes cabe. E, nesse sentido, nem sempre são consequentes com o acordo de princípio, o qual defende que qualquer indivíduo tem direito a um rendimento mínimo. Não digo que do ponto de vista teórico os governos assumam uma visão assistencialista, mas têm permitido ao longo dos últimos 30 anos que não se contrarie a lógica de mediação das instituições de solidariedade social. Não está aqui em causa a boa vontade destas organizações ? cuja maioria tem um sentido de equidade e de justiça na resolução de problemas que muitas vezes as ultrapassam ?, mas sim o facto de o Estado dar preferência a este modelo porque é mais barato. Por outro lado, há também uma motivação de ordem naturalista, porque o facto de grande parte destas instituições gravitarem em torno da igreja católica permite justamente um controle das consciências que, no meu entender, não é condizente com um Estado laico e com um Estado de direito que deve assumir estes princípios independentemente da raça, da etnia, da classe e, sobretudo, da religião. É algo que nos países nórdicos, por exemplo, não acontece.
Perante este quadro, quais lhe parecem ser as perspectivas a médio e longo prazo neste domínio em Portugal?
Tendo em conta a actual obsessão em torno do défice e o facto de não haver acumulação de capital ou de recursos a nível do Estado, penso que, a não haver uma tributação mais alta dos lucros dos grupos económicos que permita equilibrar o erário público, não se verificará, no futuro próximo, uma inversão ou uma reorientação face às actuais políticas sociais. No actual quadro de neo-liberalismo económico, com a privatização de certos serviços nas áreas da saúde e da educação, os grupos ou classes sociais com menores recursos irão certamente deparar-se com dificuldades crescentes para fazer face aos seus constrangimentos. Não auguro, portanto, grandes melhorias. A não ser, claro, que se verificasse uma viragem política considerável, nomeadamente se o Partido Socialista assumisse uma posição que estivesse mais de acordo com as suas tradições e a sua doutrina social, a qual assume apenas em teoria. Creio, aliás, que se o Partido Socialista português fosse social-democrata à boa maneira dos partidos sociais-democratas do norte e do centro da Europa, acho que teria dado um grande contributo para diminuir as desigualdades sociais e, sobretudo, para combater a pobreza. Portanto, não vale a pena verter lágrimas de crocodilo e dizer que é uma vergonha Portugal ter tantos pobres, quando de facto nada faz de substancial para mudar esta situação. O Estado não pode afirmar-se como democrático enquanto não resolver o problema da pobreza. Porque ataca e agride aquilo que são os princípios básicos de direito e dos direitos humanos. Mas não é apenas o Estado (e em particular o governo) que demonstra não ter sensibilidade para esta questão. A própria sociedade portuguesa alheia-se dela. Porque em termos de mentalidade e de valores parte do princípio que se a pobreza existe é porque os pobres ou são preguiçosos, ou incapazes ou porque o destino lhes reservou tal sorte. Não se assume que a pobreza está estritamente relacionada com a distribuição da riqueza. Aliás, é de todo o interesse dos mais ricos que a pobreza não se alastre tão profundamente. Porque à partida, havendo organização, não podemos excluir um cenário em que os mais pobres se organizem e representem uma contestação ao sistema.
Isso aconteceu recentemente no Japão?
Sim, mas porque havia alguma organização. Em Portugal, no entanto, o problema é que os mais pobres, os mais destituídos, não têm redes, não têm contactos, não têm organização, e por isso estão sempre entregues a si próprios. A isto acresce um certo sentimento de resignação e de fatalismo, aliado a uma fraca consciência política. Toda a ideologia religiosa, cristã, salvo algumas franjas que têm um papel mais pró-activo de cidadania, e grande parte das organizações que a sustentam, assumem que a pobreza é uma fatalidade e não promovem uma consciência em prol da mudança.
Desigualdades sociais estendem-se à educação
A educação sempre foi encarada como um instrumento de redução das desigualdades sociais. Ainda é assim?
Ainda o é para muitas pessoas, e de facto, em Portugal, nas últimas décadas, mais do que a propriedade foi a educação o veículo que permitiu a melhoria da qualidade de vida e uma maior segurança no emprego de uma percentagem considerável de portugueses. Não digo que a educação tenha constituído uma "avenida de mobilidade social", porque isso pressupõe uma mudança de classe social, mas permitiu, ainda assim, melhorias a nível social. Sobretudo se compararmos com a situação que se vivia no passado, onde quer os trabalhadores industriais, quer os trabalhadores rurais não tinham qualquer tipo de segurança laboral. Acho que desse ponto de vista houve uma melhoria significativa.
Mas qual foi, em termos práticos, o significado e o alcance dessa mudança?
Apesar de não podermos subestimar as melhorias proporcionadas pelo maior acesso à educação, do ponto de vista da mobilidade social versus reprodução social eu diria que os avanços não foram, de facto, assim tão significativos. Ou seja, a maior parte das pessoas reproduziu no novo quadro industrial moderno e na nova configuração económica e social a posição dos seus pais. Isto, porque apesar de terem ganho uma maior segurança no trabalho, estabilidade salarial e direitos sociais ? nomeadamente ao nível da reforma e do subsídio de desemprego ?, não deixaram de ser trabalhadores assalariados e explorados. E isto significa que o processo de mobilidade não é assim tão alargado. Porque quem detinha uma posição razoável no passado continua a ter essa posição. Simplesmente exige-se para essa posição uma maior qualificação. Portanto, ao ser mais exigente nas qualificações para um determinado lugar no processo produtivo, o sistema vai simplesmente fazer com que se reproduzam os lugares com maior exigência de qualificações.
Acha que a aposta no ensino profissional, que é uma das metas educativas deste governo, denota uma real intenção política em reforçar a qualificação dos portugueses ou terá contida em si alguma forma de divisão social?
Sim, penso que, de certa forma, começa a haver uma reintrodução do antigo sistema que fazia a distinção entre escolas profissionais e liceus.
Em que medida pode ou não constituir uma boa oportunidade?
Poderá constituir uma boa oportunidade se for pensado não a partir de critérios económicos ou da condição social do aluno, mas se procurar potenciar as capacidades dos candidatos, independentemente da sua origem socioeconómica. O que habitualmente sucede é que, mesmo em países considerados mais avançados do ponto de vista social e económico, é posta em prática uma política diferenciadora e até discriminadora. É o caso, entre outros, de países como a Holanda ou a Suiça, onde os alunos oriundos de famílias com menores recursos são orientados por uma equipa pedagógica, ou pelos próprios docentes, para determinadas áreas vocacionais de acordo com as competências demonstradas. Só que essas competências estão à partida enviesadas pelo facto de os filhos das famílias com menores recursos não terem competências escolares e extra-escolares que lhes permitam superar os vários degraus que conduzem a patamares escolares mais elevados. Há como que um sistema subtil de discriminação e de diferenciação social que, na minha opinião, está a querer ser introduzido em Portugal. Se for esse o caso, há que ter alguma reserva e alguma preocupação. No entanto, e dado existir um défice de trabalhadores qualificados em determinadas áreas profissionais, não vejo porque razão quem não sentir apetência para estudos de maior exigência intelectual possa encontrar no ensino profissional um meio para obter as competências próprias para o exercício desse tipo de trabalhos.
Concorda com a ideia de que a escola reproduz, de alguma forma, as desigualdades sociais?
Grosso modo diria que sim, mas não gostava de ser muito categórico nesta afirmação. Porque a escola, quer queiramos ou não, não é nenhum remédio santo para impedir as desigualdades sociais e inclusivamente para diminuir o seu alcance.
Qual pode ser, então, o papel da escola pública na redução das desigualdades sociais?
Antes de mais, a escola pública tem um papel muito importante se permitir o acesso à educação com o menor custo possível, e até tendencialmente gratuito, a todas as famílias. Penso que a manutenção do papel da escola pública e da sua qualidade de ensino deve ser motivo de exigência permanente. A maior violência que se pode exercer sobre as crianças e jovens oriundas de classes desfavorecidas ou excluídas é a de não lhes proporcionar o acesso aos meios educativos. No entanto, e embora tenha diminuído em grande medida relativamente ao passado, creio que esta forma de exclusão grave ameaça reproduzir-se uma vez mais, nomeadamente ao impedir o prolongamento da escolaridade a certas camadas da população por motivações económicas, ou pelo facto de os esquemas cognitivos e normativos impedirem muitas vezes essas crianças e jovens, oriundos de famílias com défice dessa cultura escolar convencional, de terem um maior acesso à escola. Se a isto se acrescentar a existência de professores que não sejam capazes de ter uma sensibilidade diferenciada para os diferentes tipos e grupos sociais que convivem na escola, naturalmente que não terão a mesma capacidade nem possibilidade de terem sucesso educativo, o que inevitavelmente conduz a processos de exclusão. Ou seja, a escola reproduz as desigualdades sociais pela via institucional e, sobretudo, pela via dos agentes educativos. Felizmente que ainda existem muitos professores atentos a estas desigualdades, mas nem todos têm a capacidade e sensibilidade de perceber a heterogeneidade, a composição social e as culturas dos seus alunos, o que resulta naturalmente em dificuldades para ultrapassar as barreiras que se colocam no exercício da profissão. Neste sentido, considero fundamental que, através da via institucional da política educativa, mas também pela via dos seus mediadores e agentes, haja apoios de discriminação positiva para esses alunos e alunas oriundos de meios mais desfavorecidos. Penso que é a única maneira de a escola poder cumprir cabalmente a sua função. Se não tiver essas condições, então, naturalmente, tenderá a reproduzir as desigualdades existentes na sociedade.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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