Transgressões
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Naquele dia, quando entrei na sala os alunos do 10ºG estavam excitadíssimos. Era uma turma um tanto agitada e barulhenta. Por isso, inicialmente, não lhes dei muita atenção esperando que se acalmassem. Mas eles continuavam e era a mim que se dirigiam. ? Não há direito, "stora", não há direito mesmo?; ? Não é justo, não acho que possa ser assim!...; ? Havia de ver, se fosse consigo também aposto que ia achar muito mau? ? Pois é, assim uma pessoa nem sabe o que há-de fazer? ? Pois, ou bem que é assim ou bem que é assado? ? Até parece que a" stora" de História só quer é fazer-nos mal? ? Pois mas ela ficou lixada connosco, isso ficou?por isso? ? Tá bem tá, o pior vai ser a minha mãe? mas a verdade é que não é justo! E as exclamações ditas todas ao mesmo tempo, seguiam-se em catadupa. Por fim, acalmado aquele vendaval de indignações, reclamações e lamentos, lá consegui que me contassem. E a coisa terá sido assim: Este terrível 10ºG, conhecido na escola pela forma desorganizada e turbulenta que punha em tudo o que fazia ? ainda que os resultados escolares não fossem maus ? era perturbador ao entrar na sala e, claro, também ao sair, embora menos. A liberdade do intervalo esperava-os lá fora por isso nas saídas perdiam menos tempo. Participavam nas aulas, às vezes com demasiado entusiasmo e, claro, muitas vezes não era exactamente na direcção que o professor esperava embora não se pudesse dizer que era fora do quadro de aprendizagem. Eram como um pequeno rio selvagem que, por vezes, surpreendia quando invadia as margens. E este 10º G invadia as margens e fazia impacientes muitos dos docentes. No entanto a maioria conseguia gerir as suas contradições com aquela turma e, tal como eu, também por vezes suspirava queixas de como eles eram cansativos e turbulentos. Mas o ponto nevrálgico, a questão sempre recorrente, era com a professora de História. Aí as tenções adensavam-se, havia tolerância zero de parte a parte. O mais grave era sempre a entrada na sala: ou entravam devagar, a conta-gotas, ou acumulavam-se na porta da entrada, como por magia iam a entrar três exactamente ao mesmo tempo e os ombros fiavam todos entalados, ou depois de entrar enganavam-se no caminho mais curto para as respectivas mesas, faziam um pequeno percurso antes de se sentarem e, quando o faziam, a professora de História tinha esgotado a paciência. Seguia-se uma sequência de admoestações e respectivas desculpas, como podemos imaginar: já estou a ir para o meu lugar; eu até já estava sentado, foi a Sónia," stora"; ainda só entrei agora porque não se podia passar na porta; eu demorei no corredor porque me estavam a chamar das escadas; eu já estava mesmo a vir só que me enganei na sala; eu já estava aqui dentro só que estava à procura do meu caderno; foi o Vítor," stora", que tirou o meu estojo? Até que um dia a professora disse-lhes que a paciência estava esgotada, não haveria mais desculpas, havia uma organização a cumprir, na aula seguinte quem entrasse um segundo atrasado ou não se sentasse logo seria castigado com falta disciplinar. E não haveria desculpas para os bons alunos ou outra coisa qualquer. Perante esta declaração tão firme estes jovens adolescentes reuniram-se e decidiram a próxima entrada na aula de História. À hora de entrada a professora deparou-se com um fila militarmente organizada à porta da sala. Em silêncio os alunos esperavam-na e em coro perfeito declamaram, Bom dia "stora"! Depois, um a um, como numa coreografia ensaiada entraram por ordem alfabética, dirigiram-se em silêncio para os seus lugares e sentaram-se. A professora, estupefacta, olhava-os sem perceber. Eles mantinham-se impassíveis, olhos fixos, olhar em frente. A professora irritada perguntou: ? O que é que isto quer dizer? ? Isto o quê, "stora"?, perguntaram em coro. Aí a professora não aguentou mais: não admito que brinquem comigo, todos com falta disciplinar! E era esta a razão daqueles protestos em coro que chegavam agora à minha aula. Verdadeiramente fiquei sem saber que dizer. A infracção era a infracção da infracção? A infracção era a regra? De facto, os alunos têm muito poder quando querem, mesmo se jogarem no terreno do regulamento instituído. Podem construir a infracção pelo contraste com o regulamentado?ou pelo inverso.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Agosto/Setembro 2007
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Autoria:
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
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