A educação segundo Fragonard
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Não creio que Fragonard alguma vez tivesse escrito sobre educação, sendo aqui tomado como um pretexto para criticar as derivas técnico-instrumentais que vêm dominando as agendas contemporâneas de política educativa. Nascido em 1732 na Provença, Jean-Honoré Fragonard é um pintor conhecido e muito exposto, especialmente em França. Talvez a sua obra mais célebre seja o "Baloiço", cuja fama o tem remetido para o contexto adocicado de inúmeras caixas de chocolates. Outros trabalhos seus, curiosamente, podem ser integrados num universo de tipo educacional, como é o caso de "A Lição de Música", de "O Estudo" e ainda de "A Leitora", este último também objecto de muitas reproduções. Mas nenhum outro vem mais a propósito, para os intuitos deste texto, do que aquele que pude encontrar no acervo do Museu de Arte de São Paulo, no Brasil. Com efeito, o MASP, na Avenida Paulista, exibia há pouco tempo um pequeno mas sugestivo óleo sobre tela intitulado "A Educação Faz Tudo", no qual um grupo de crianças, de ambos os sexos, observa atentamente a execução de difíceis "competências" e "habilidades", desempenhadas pelas duas personagens principais do quadro, de resto as únicas que são apresentadas em posição central e frontal face ao observador da pintura. O que é interessante é que, neste caso, o papel de "mestre" é desempenhado pela criança mais velha do referido grupo, a qual dirige a acção e exerce as suas funções através da força da "educação", confirmada pela "performance" excelente de dois simpáticos cãezinhos amestrados. Não pude, amargamente, deixar de reflectir sobre a situação de confusão e de sincretismo que, hoje, é observável em torno dos conceitos, das políticas e das práticas de educação / formação / aprendizagem ao longo da vida, no quadro do novo capitalismo. Por mais que nos digam que os debates teóricos e conceptuais estão fora da agenda (anti-intelectualista, no caso), ou que reconheça que a solução não reside na busca de definições essencialistas de educação, formação e aprendizagem, quando estas são construções históricas e socioculturais. Tais dificuldades, porém, não justificam o puro relativismo, a despolitização e a recusa da historicidade daqueles conceitos. Como Fragonard, embora já à margem de objectivos estéticos e de recursos metafóricos, a celebração mais ou menos épica das propriedades salvíficas da educação face aos problemas da economia e da sociedade, resvala com frequência para o domínio da amestração, do adestramento ou do puro treinamento, numa busca incessante de novas "competências" e de maiores "qualificações" da mão-de-obra assalariada. Por isso mesmo o conceito de educação perde, progressivamente, protagonismo político e social, vendo-se confinado a uma posição subalterna face à "formação vocacional", profissional e contínua, à "aquisição de competências para competir" e, sobretudo, face às "qualificações", em torno das quais a população portuguesa, é afirmado, evidencia preocupantes "debilidades", "lacunas" e "défices". O crescimento económico, a produtividade e a competitividade, a modernização das empresas e a formação para a "empregabilidade" deixaram a educação para trás ou, em alternativa, invocam-na em termos friamente tecnicistas. Como se os nossos maiores problemas pudessem ser resolvidos através da qualificação profissional dos activos, sem retaguarda educativa, cultural, cívica e política. E como se a educação pudesse "fazer tudo". Não obstante, a crítica ao pensamento educacional e à pedagogia ocorre em simultâneo com o apogeu do pedagogismo económico e gerencial, baseado na crença de que só um novo paradigma de aprendizagem e de qualificação, de tipo individualista e pragmatista, poderá fazer face aos "desafios" da globalização e da "economia do conhecimento". A nossa relação com a promoção de uma educação pública e cidadã tem sido marcadamente hiperbólica ao longo da história. No passado não muito remoto a educação do povo não servia para nada e arriscava-se a contaminá-lo pela cultura letrada, em prejuízo da sua celebrada rusticidade. No presente, a "educação faz tudo", principalmente quando funcionalmente adaptada aos imperativos da economia, isto é, quando reconvertida em "qualificação para o crescimento económico", alienando as suas responsabilidades educativas e culturais, morais e ético-políticas e preparando apenas, ou sobretudo, para o trabalho; de resto, para um trabalho que, cada vez com maior frequência, não existe, ou já não está lá, não obstante as promessas em sentido inverso.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Junho 2007
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Autoria:
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
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