Dois pecados históricos da civilização cristã
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Há pecados históricos da civilização ocidental, genericamente de matriz cristã, que são particularmente graves porque, silenciados na profundeza da má-consciência, raramente ou nunca se assumem, "urbi et orbi", pelos efeitos provocados. Sobretudo e mais grave ainda, porque esses efeitos atravessaram séculos e repercutem na actualidade. Perante as práticas antinómicas duma doutrina firmada numa pedagogia de fraternidade, tolerância e perdão, vemos dois "pecados mortais" contra o próximo que foram particularmente devastadores: as discriminações dos judeus e dos negros. Os primeiros, discriminados por não acreditarem que Jesus era uma representação ou um enviado do Senhor Deus, o Messias anunciado pelos profetas; os segundos, porque, alegadamente nascidos sem alma, só a adquiriam depois de baptizados, mas continuando a ser considerados intelectualmente inferiores ao homem branco. E em ambos os casos, a discriminação fixou-lhes, como condição extrema de sobrevivência, as margens do rio da história dos brancos cristãos, - por estes tomada como normativa da Verdade e do Bem ? resistindo, em guetos e quilombos, à perseguição, ao extermínio e à escravidão. A necessidade continuada do trabalho escravo propiciou a indispensabilidade do negro e, por arrastamento, a sua paulatina e relativa ascensão na sociedade do branco, uma vez reconhecido que ele afinal possuía alma, capacidade intelectual igual à do branco e, quando "educado", podia compartilhar dos seus valores sociais, morais e religiosos. E, sobretudo, não tinha a "culpa" de ser negro. Por isso, ele nunca foi expulso dos lugares para onde a escravatura o afastou da sua pátria original e pôde fazer seu o país do desterro, por fim sem o sentimento doloroso da diáspora e o apelo lancinante do retorno à Mãe-África, cuja memória histórica, transmitida oralmente, começava e acabava na sua própria memória. Diferentemente, o judeu tinha a memória escrita de um longo passado e o estigma da "culpa" que lhe foi assacada quando os cristãos privilegiaram a leitura da segunda parte (o Novo Testamento) da Bíblia, o Livro Histórico, em detrimento da primeira parte (o Velho Testamento), que contemplava, desde o Génesis, os tempos anteriores ao surgimento de Jesus. Aqui começa a separação do mesmo povo que se dividiu entre a Palavra dos antigos e respeitados profetas, como Abrarão e Moisés, e a Palavra de um novo profeta chamado Jesus. No contexto de um pequeno mundo da Ásia Menor de povos politeístas, confinando com civilizações poderosas, e igualmente politeístas, acreditar num Deus único, criador de todas as coisas, que já andara na Terra e a ela voltaria , segundo os profetas, não bastara, porém, para unificar os habitantes monoteístas do mesmo território. Uns, que seguiram a Palavra de Jesus, reconheceram-no como sendo, mais do que o Messias prometido, a própria incarnação do Senhor Deus; outros, entenderam que Jesus era simplesmente um profeta novo e não o Messias que ainda haveria de chegar, em nome de Jeová; e outros ainda, quinhentos anos após a morte de Jesus, entronizando no meio de cristãos e judeus um novo profeta, Maomé, em nome de Alá, também senhor do Céu e da Terra. E, por incrível que pareça hoje, pois partiram da mesma revelação moisaica de um Deus único, cada um dos três grupos de crentes seguindo códigos distintos: a Bíblia, a Tora e o Corão. Chamou-se Palestina ao país de Canaã consignado pelo Senhor Deus, em várias épocas, - designadamente as de Jacob (a quem foi dado o nome de Israel), de Abraão e de Moisés - aos "filhos de Israel", compreendendo o espaço entre o deserto do Sinai e o Líbano, o Mar Salgado e o rio Eufrates. Segundo aqueles que foram chamados entre o povo escolhido para passarem às gerações vindouras a Palavra do Senhor Deus, este mandou que tal território fosse dividido à sorte pelas tribos israelitas, dispersas ou expulsas da terra original em consequência de grandes fomes, rixas intestinas e guerras de conquista movidas pelos vários impérios emergentes que dominaram na região ao longo de séculos, tais como o Selêucida, o Romano, o Bizantino, o Árabe ou o Turco (este até ao fim da Primeira Guerra Mundial). E, por último, vencido pelos Aliados o Império Otomano, foi como protectorado do Reino Unido, por mandato da Sociedade das Nações, desde 1918 a 1948, que as Nações Unidas promulgaram o Estado de Israel. São sobejamente conhecidas as reacções dos palestinos, logo em 1948, apoiados pelos vizinhos árabes, ao retorno dos judeus da Diáspora à Terra Prometida e à sua determinação de voltarem a orar ao Senhor Deus no templo de Jerusalém, como os muçulmanos oravam na mesquita de Al-Haram, em Meca. Um estudioso do hebraico da Bíblia e do Talmude dirá, como George Steiner, no seu ensaio "Paixão Intacta", que " a 'textualidade' da condição judaica, desde a destruição do Templo até à fundação do moderno Estado de Israel foi o instrumento da sobrevivência no exílio; essa sobrevivência esteve à beira da aniquilação. Para continuar a existir, 'o povo do Livro' tinha de voltar a ser uma nação." Mas pondera ainda Steiner que, "materialmente encerrado numa pátria material, o texto pode vir a perder a sua força, os seus valores de verdade podem vir a ser traídos"- o que significaria um "regresso" de recurso à pátria mítica que sobreviveu até hoje, independentemente do tempo e do espaço onde quer que o Livro esteja presente. Talvez os palestinos e os árabes contem com este raciocínio para continuarem a sua pressão ... Mas a interrogação que um observador "desinteressado" fará, hoje, face à luta que as duas partes travam renhidamente pela conquista de uma pátria "material", é se os judeus, confiando finalmente que a má-consciência dos cristãos não permitirá outras Diásporas e Holocaustos, poderão desistir de disputar até ao final dos tempos a "herança" da terra de Israel, considerando as muralhas sagradas de Sião como selo do testamento do Senhor Deus.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Maio 2007
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Autoria:
Escritor - Jornalista, Porto
Escritor - Jornalista, Porto
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