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Chveik e o capelão continuam os preparativos para ministrar a extrema-unção

Enquanto esperava a fiel ordenança, o capelão percorria o catecismo para meter na cabeça aquilo que outrora apren­dera mal no seminário. Divertia-se muito com certas frases de uma espiritual precisão, do género desta: ?O termo extrema­-unção deve a sua origem ao facto de, na maioria dos casos, ser a última unção que os fiéis recebem da Igreja antes de morrer.? Ou então: ?A extrema-unção pode ser recebida por todo o católico que se encontre gravemente doente e no uso de todas as faculdades.? Ou ainda: ?O doente deve receber a extrema-unção ? sempre que possível ? na altura em que ainda possua memória.?
Um impedido trouxe uma carta que prevenia o capelão militar que a Associação das Senhoras Nobres para a Educação Religiosa do Soldado assistiria à cerimónia do dia seguinte.
Esta ?associação? compunha-se de mulheres velhas e his­téricas que percorriam os hospitais, distribuindo aos soldados imagens de santidade, historietas edificantes nas quais o herói era sempre um soldado católico, feliz em morrer pelo Impe­rador. As brochuras eram ilustradas: via-se um campo de batalha coberto de cadáveres de homens e de cavalos, de com­boios e carretas despedaçados, de canhões derrubados. O hori­zonte era preenchido pelas aldeias em chamas e granadas que explodiam em todas as direcções, enquanto no primeiro plano um soldado, a quem um estilhaço acabava de decepar a perna, recebia das mãos de um anjo uma coroa com uma fita em que figurava uma inscrição sedutora: ?Esta noite estarás comigo no Paraíso.? O moribundo sorria como se lhe tivessem oferecido um refresco delicioso.
Depois de percorrer o conteúdo da carta, o capelão  exclamou ao mesmo tempo que cuspia:
? O dia de amanhã promete!
Conhecia muito bem a ?quadrilha de tartufos femininos?, como lhes chamava, por tê-la encontrado outrora frequentes vezes nos seus sermões de Santo Inácio. Era no tempo em que ele ainda pregava com toda a candura ingénua de jovem eclesiástico; as senhoras ocupavam o lugar atrás do coronel. Certa vez, duas grandes trangalhadanças de negro e com enor­mes rosários pendurados no pescoço magro, esperaram-no à saída para conversarem com ele, durante duas horas, sobre a educação religiosa dos soldados. Nunca mais acabariam se o capelão não as tivesse interrompido, justificando-se: ?Des­culpem, minhas senhoras, mas o capitão está à minha espera para uma partida de cartas.?
Tudo em ordem, senhor capelão ? pronunciou Chveik com solenidade, de volta do recado ? Encontrei o óleo consa­grado. É óleo de cânhamo, número três, de primeira quali­dade. Esta quantidade chega para untar um batalhão inteiro. A casa Polak tem em armazém as melhores mercadorias de toda a cidade. Vende também tintas, verniz e pincéis. Só nos falta uma campainha.
? Para quê, meu querido Chveik?
? Ora essa! É preciso tocar durante o percurso para que as pessoas tirem os chapéus ao verem passar o sacramento, isto é, o óleo número três. É assim que se procede sempre, e conheço inúmeras pessoas que foram condenadas por não se descobrirem à passagem do sacramento. Em Ziskov, um cura moeu de pancada um cego que, num caso semelhante, não tirara o chapéu, e o desgraçado, ainda por cima, apanhou vários meses de cadeia, porque lhe provaram que não era surdo-mudo, mas apenas cego, que não podendo ver poderia ouvir perfeitamente a campainha e a sua conduta provocara um grande escândalo entre os presentes. É como na festa do Corpo de Deus. Pessoas que de outra maneira não nos prestariam a menor atenção, são obrigadas nessa altura a descobrirem-se. Se não vir nisso inconveniente, abalo imediatamente à procura de uma sineta.
Obtida a autorização, Chveik voltou meia hora depois, munido de uma campainha.
É o chocalho do porteiro da estalagem Kriz ? esclareceu. ? Custou-me cinco minutos de susto, mas tive de espe­rar bastante tempo, porque havia sempre gente a passar e podiam topar-me.
? Muito bem meu caro, temos então o óleo e a sineta, disse o cura. ? Agora  vou até ao café, Chveik; se alguém vier procurar­-me, diga-lhe que espere.

(Jaroslav Hasek, O Valente Soldado Chveik)


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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