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A Queima do Judas

Personificado por um tosco boneco que é ciclicamente imolado num auto-de-fé popular, proporcionando deste modo uma catársica e regeneradora destruição, a insólita "queima do judas" consubstancia ainda uma inegável sátira à abstinência quaresmal que, na morte do Iscariotes,  encontra a vingança há tanto tempo ansiada.
O ?apóstolo maldito? serve, deste modo, de bode expiatório dos malefícios da obrigatória frugalidade da Quaresma, bem como de arquétipo daquilo que é velho e gasto e se rejeita ritualmente destruindo-se pelo fogo, pela espada, pelo apedrejamento, pelo afogamento, pelo enterramento!
Como em outros costumes semelhantes, também aqui simbologias arcanas se aditam a funcionalidades críticas diversas, conjugando-se tudo para fazer destas práticas modelos tradicionais susceptíveis de se perpetuarem até aos nossos dias.
Fora de portas, este costume era usual na Galiza (que com o Minho se interliga em simbiose cultural), bem como em Zurique, na Suíça, nos célebres festejos de Sechseläuten, na Rússia e, ainda, um pouco por toda a América Latina. Nalguns casos, como acontece na província argentina de Salto, o boneco traz uma bolsa que recorda os trinta dinheiros e noutra um cartaz em que está escrito:

Aqui yace Judas Iscariote
Quien a Cristo vendió
Todos los que me miran
Son más Judas que yo!

Muitas vezes o pirotécnico espectáculo era precedido de grotescos "julgamentos" e proclamações de "testamentos". Nalguns casos, principalmente nas grandes cidades, eram queimados diversos ?judas?; um por cada bairro ou agremiação profissional ou recreativa.
E se este é, como parece ter sido, um costume em grande parte urbano, a mudança cultural mais rápida que as cidades e vilas sofreram conduziu, concerteza, a um igualmente mais rápido desaparecimento destes costumes, na maior parte dos casos há já várias décadas.
Em 1903, já o jornal ?O Século? dava testemunho de uma decadência inexorável nas docas lisboetas que, nesse ano, apenas tinham permitido a continuação do costume, e cito: ?...no cruzador São Rafael (...) onde se enforcou o Judas no mastro da proa? e em duas fragatas sediadas na doca de Alcântara onde ?foram içados bonecos de palha e à hora convencional houve basta paulada no pseudo Judas em meio de peripécias engraçadas e de grande aglomeração de gente que se juntou no caes?.
Como se vê a queima era aqui substituída pelo enforcamento precedido de uma sessão de paulada  no desgraçado em que todos participavam no meio da maior balbúrdia e regozijo, já se vê!
Na verdade a pantomina parece ter sido anteriormente ainda mais elaborada e incluir até, muitas vezes, galhofeiros ?testamentos?. Num texto de cordel significativa e extensivamente denominado ?Novo Testamento do Judas que Morreu Afogado no Tejo e Enforcado por Honra de seus Parentes, neste ano de 1752 à Vista de todos os Barqueiros?, Leite de Vasconcelos relata a leitura das ?últimas vontades do criminoso? por parte de um  denominando ?Lusbel Tabelião?. Atente-se nesta colorida descrição:
?Deixa os trastes vélhos aos que por cá ficam e pertencem como êle à fauna mixordeira da cidade (...) a bolsa e dinheiros a  todo aquelle que como a mim for, porque ha maons pelo mundo, com rigores, que são como as de Judas e peyores?
À semelhança da capital e dos concelhos portuários próximos, em Olhão e em Vila Franca de Xira, contentavam-se em ?moê-lo à pancada? situação geradora, como se calcula, do mais completo e hilariante tumulto, enquanto em Farinhão-Parada de Gonta, freguesia pertencente ao concelho de Tondela, o mesmo era impiedosamente apedrejado!
A maior parte dos casos consistiam, porém, em simples imolações a que as bombas forneciam o elemento imprevisível e espectacular. Em Arzila-Coimbra, bem como nas Lapas-Torres Novas, o Judas ?estava atado com uma corda que o ligava de um lado ao outro da estrada." Deitava-se-lhe fogo aos pés e, quando o mesmo atingia a cabeça que continha uma bomba, esta estoirava estrondosamente enquanto o sino tocava freneticamente a rebate. Nas Lapas, como se não bastasse a desintegração completa da efígie, a cada explosão bombista sucedia-se um coro de imprecações e insultos dirigidos ao apóstolo maldito assim justiciado.
Em Águeda, mais precisamente na freguesia de Travassó (tal como acontece em Trancoso), esta tradição ainda hoje persiste embora a mesma continue a ter de coexistir com disposições eclesiásticas pouco abonatórias.
E se é assim em tempos modernos, calcule-se a situação em tempos passados. Os conflitos, explícitos ou implícitos, eram frequentes, bem como as intervenções das autoridades, dando azo a desenvolvimentos comunitários susceptíveis nalguns casos de interrupção ou até, a mais ou menos definitivas, suspensões do costume.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém
Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém

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