Richard Hatcher, investigador e activista social, teme pelo futuro do ensino público europeu
Richard Hatcher é Director do Departamento de Investigação da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Central England, em Birmingham. Antes de ingressar na carreira universitária, Hatcher foi professor do ensino primário e de ?Further Education?, que em Inglaterra equivale ao ensino recorrente de formação pós-estudos. As suas áreas de interesse vão desde política educativa a temas ligados à governação e à participação, a contextos internacionais de reforma educativa e à igualdade de oportunidades, no âmbito dos quais tem coordenado diversos programas de investigação, acompanhamento e avaliação. Tem publicado, desde 1991, uma vasta obra sobre política educativa, com um ênfase nas questões de justiça social. A sua linha de investigação mais recente inclui estudos sobre zonas de intervenção educativa em Inglaterra e em França e sobre a experiência de educação e democracia participativas no Brasil, em particular no Estado do Rio Grande do Sul e da sua capital, Porto Alegre. É co-fundador da revista ?Education and Social Justice?, membro do Conselho Editorial da ?Race Equality Teaching? e conselheiro do Conselho Editorial do ?Journal for Critical Education Policy Studies?. A Página conversou com Richard Hatcher durante a realização do I Fórum Social Ibérico para a Educação, que decorreu em Córdoba no final de Outubro do ano passado, no qual era orador convidado. A crescente mercantilização do ensino público britânico, que Hatcher acredita vir a estender-se aos restantes países europeus, e a falta de resposta por parte das entidades sindicais do país são os temas dominantes desta entrevista.
Qual tem sido a política educativa seguida pelo actual governo trabalhista e em que medida está a transformar o conceito de ensino público?
Após dezoito anos de poder conservador em Inglaterra, havia a esperança de que o governo trabalhista mudasse o rumo da política educativa. Anteriormente à eleição do actual governo, em 1997, havia muita contestação à política educativa do Partido Conservador, mas, ao contrário do que se esperava, os trabalhistas foram ainda mais longe do que os conservadores em determinadas áreas, como é o exemplo do estabelecimento de propinas no ensino superior público. Mas este não é o único exemplo. O governo de Tony Blair aprovou também uma lei que oferece a possibilidade às escolas públicas de se demarcarem da jurisdição das autoridades educativas locais, cuja tutela pertence aos municípios. As escolas são desta forma encorajadas a seguir uma via completamente autónoma, à semelhança do que defendiam os conservadores, fórmula que os trabalhistas haviam abolido quando chegaram ao poder.
Em 2001, o principal conselheiro sobre temas educativos de Tony Blair, Michael Barber, afirmou que ?no século XX, o impulso para o progresso educativo vinha do sector público. No final do século XX, com a frustração dos sistemas existentes, esta herança foi desafiada por um sector privado crescente e vibrante...?. É esta a ideia que tem marcado a actuação do governo trabalhista?
No passado, os trabalhistas baseavam os seus projectos de reforma educativa nos pareceres dos professores e das autoridades educativas locais, órgãos legitimamente eleitos. A situação alterou-se bastante desde então. Os professores deixaram de ser vistos como parte da solução para passarem a ser encarados como parte do problema, à semelhança dos conselhos locais de educação, que o governo encara como órgãos burocráticos e conservadores - apesar de a maioria ser composta por elementos afectos ao Partido Trabalhista. No seguimento desta linha de actuação, o governo tem procurado novos agentes que lhe permitam alcançar as mudanças pretendidas: agências estatais com enorme poder de intervenção, nomeadamente ao nível da inspecção das escolas, do controlo dos professores estagiários, da progressão profissional dos professores efectivos, da transição da escola para o mundo do trabalho, etc. O segundo agente desta mudança são os pais, a quem o governo quer dar maior poder, nomeadamente através da possibilidade de estes convocarem uma inspecção e poderem encerrar uma escola, abrindo outra no lugar da anterior. Pessoalmente, acho que este tipo de situações será esporádico porque, na maioria dos casos, os pais não querem ter esse tipo de decisão em mãos. O terceiro agente é o sector privado, que pode assumir diversas formas: desde empresas privadas, a homens de negócios multimilionários, à própria igreja, quer a anglicana quer a católica. Isto, porque Tony Blair acredita que a igreja ? que já administra escolas no sistema público ? pode ser particularmente bem sucedida em transmitir valores morais aos jovens.
Que tipo de actuação têm essas empresas privadas?
Algumas empresas actuam numa base não lucrativa, mas outras têm um intuito claramente comercial, prestando os mais diversos serviços às escolas e às autoridades educativas locais. Esses serviços não se limitam à limpeza e manutenção das instalações ou à gestão de cantinas, mas sobretudo à implementação das próprias políticas do governo em áreas fulcrais como as inspecções escolares, actualmente conduzidas, na sua maioria, por empresas privadas. A actividade das empresas privadas estende-se ao próprio programa nacional. O governo britânico acha que sabe melhor do que os professores de que forma devem os alunos ser ensinados nas escolas, pelo que introduziu um plano bastante descritivo onde mostra aos professores de que forma devem fazê-lo, abrangendo numa primeira fase as escolas básicas e, mais recentemente, as escolas secundárias. A implementação deste programa está a cargo de uma empresa que detém um contrato de cinco anos no valor de 250 milhões de euros, o que o torna num negócio altamente lucrativo. Esta supervisão estende-se também a um novo sistema de avaliação do desempenho dos professores, que faz variar a remuneração em função da prestação individual dos docentes, monitorizada por uma série de empresas privadas.
Um laboratório à escala europeia
Uma das facetas desta tendência privatizadora traduz-se igualmente na criação das chamadas ?Academies? (Academias). Pode explicar-nos melhor em que base assenta este conceito?
As Academias são uma das formas de o sector privado se envolver numa base não lucrativa no sistema educativo. Essa participação pode assumir dois modelos. Um deles passa por apoiar financeiramente as escolas secundárias, que estão a ser incentivadas pelo governo a especializarem-se em determinadas áreas do currículo nacional. Para se tornar numa escola especializada, a escola deve recolher verbas no valor 80 mil euros a partir de fontes privadas, habitualmente junto de empresas como bancos ou supermercados, que são habitualmente quem tem poder para tal. Apesar desta doação, a empresa não adquire qualquer direito sobre a gestão da escola. Mais grave é uma outra forma de patrocínio que criou um novo tipo de escola secundária, as chamadas ?Academias?. Através deste financiamento, substituem-se escolas já existentes por outras construídas de raiz, mais caras e com melhores condições do que aquelas que são construídas com dinheiros públicos. As Academias têm um patrocinador principal, na maioria dos casos grandes empresas, homens de negócios ou a própria igreja, que pagam cerca de três milhões de euros para garantir todas as despesas de funcionamento. Em troca desse pagamento, o patrocinador ganha controlo total sobre a academia, podendo nomear o conselho escolar e decidir sobre o currículo, a contratação e a promoção dos professores, funcionando independentemente das autoridades locais de educação e à margem das regras de contratação estabelecidas a nível nacional. A igreja é uma das partes interessadas neste negócio porque ele representa uma forma relativamente barata de controlar um maior número de escolas públicas. Desde que este modelo foi criado, já foram abertas 27 escolas. O objectivo é chegar às duzentas nos próximos cinco anos, sobretudo implementadas em zonas pobres, sob o pretexto de que elas elevarão os níveis de sucesso educativo entre os alunos.
Que razões estão por trás desta tendência desreguladora e quais os interesses dos agentes privados neste processo?
O governo britânico acredita que a transformação do sistema educativo num modelo eficiente e produtivo, com vista a formar trabalhadores para uma economia competitiva, passa por dar-lhe um toque empresarial. É por essa razão que pretendem ver as empresas e a igreja envolvidas, porque acreditam que esta nova escola assenta no tipo de valores defendidos por estas instituições. O objectivo principal das empresas não é tanto o de obterem lucro, mas antes impregnar o sistema educativo de valores económicos e empresariais. As grandes companhias têm habitualmente orçamentos destinados a investimentos na área social ? é esse o nome que lhe dão ? e uma das formas de o gastarem é patrocinarem escolas. Para estas grandes empresas três milhões de euros representam uma ínfima percentagem do seu orçamento, mas é uma excelente forma de promover a imagem da companhia, mostrar que são socialmente responsáveis e fazer com que o governo olhe favoravelmente para elas. No caso dos empresários individuais esta é sobretudo uma forma de auto-promoção. A área mais popular de especialização destas academias são os negócios e a gestão, e é aí que elas tendem a apostar. A Academia de Berksley, em Londres, por exemplo, cujo patrocinador é David Garrad, um grande promotor imobiliário, é uma destas escolas. Todas as sextas-feiras, os alunos dedicam a jornada escolar a simular a actividade de homens e mulheres de negócios. Existem até televisores na escola parecidos com aqueles que estamos habituados a ver nas bolsas de mercados para os alunos jogarem à compra e venda de acções?
Acha que este tipo de processo se pode alargar ao resto do continente europeu? Ouvi-o, nesse sentido, falar do chamado ?Método Aberto de Cooperação?. O que é?
O texto da proposta de Constituição Europeia refere que a educação é uma matéria do foro interno de cada estado. A Estratégia de Lisboa, porém, tem como objectivo desenvolver a sociedade do conhecimento e fazer da Europa a zona económica mais competitiva do mundo, afirmando que os sistemas educativos são cruciais para essa tarefa. Daí que, apesar das garantias dos governos e da própria UE, decorre actualmente, de facto, um processo de harmonização e de convergência na área da educação na Europa. O método aberto de cooperação não é mais do que um dos principais mecanismos para atingir este objectivo, decorrendo de um processo de avaliação formal e de comparações dos diferentes sistemas educativos europeus. Aqueles que a UE considera mais bem sucedidos acabam por tornar-se referências para os restantes países. A partir desta altura, a avaliação passa a processar-se tendo em conta os esforços realizados por cada país no sentido de se adaptarem a estes modelos. Tendo em conta o modelo neoliberal que caracteriza os países mais avançados da UE, é natural que as propostas educativas por eles adoptadas se tornem os exemplos a seguir. E um dos principais exemplos é a Inglaterra. Por isso, apesar de os governos dos países do sul da Europa estarem a ter mais dificuldades em implementar este modelo neoliberal, não tenho dúvida que será esse o caminho que acabarão por tomar.
Pais e professores divididos
Como estão os pais e os professores a reagir a este processo?
Uma parte dos professores, e mesmo dos encarregados de educação, concorda com este sistema, incluindo a maioria dos que trabalha neste tipo de escolas. Para os professores significa mais trabalho e, consequentemente, salários melhores. Mas nem sempre é pacífico. Os pais, por seu lado, acham atraente a ideia de uma nova escola, mais bem equipada. Mas há uma forte oposição local a este processo, tanto por parte de professores como de encarregados de educação, sobretudo à medida que se vão apercebendo das suas implicações. Estas escolas distorcem a realidade do sistema educativo local, já que, ao contrário do que se pretende, tendem a atrair alunos oriundos das classes médias e acentuam o desequilíbrio das oportunidades de acesso.
Que posição têm tomado os sindicatos?
Também eles estão divididos. De acordo com uma recente sondagem, apenas 6 por cento dos elementos afectos ao sindicato dos directores de escola são favoráveis às Academias, 40 por cento são contra e os restantes não têm opinião formada. O sindicato a que pertenço, o Sindicato Nacional de Professores (National Union of Teachers), que é o mais representativo da Grã-Bretanha, já afirmou opor-se a este tipo de escolas. Porém, até ao momento, não foi tomada nenhuma iniciativa concreta contra este processo. Outros sindicatos, como o NASUWT, quase tão influente e numeroso como o nosso, ainda não tomaram posição, porque os seus interesses são demasiado sectoriais e não vêm qualquer problema nisto desde que os sócios continuem a pagar as quotas? Porém, ao longo do último ano, tem-se assistido a um número crescente de campanhas locais contra a criação de academias. Juntamente com um colega, tenho realizado alguma investigação sobre esta matéria, conduzindo entrevistas junto de professores e pais um pouco por todo o país, de Londres ao norte de Inglaterra, passando pelas Midlands, onde resido, tendo constatado que este processo tem gerado o maior empenho da população em torno da educação desde há muitos anos. O empenho em torno desta matéria é surpreendente, com pais e professores a irem de porta em porta, convocando assembleias, gerando protestos?
Isso no que se refere às Academias? Mas qual tem sido a reacção a este crescente processo de privatização do sector educativo. As estruturas sindicais têm organizado formas de luta?
Gostaria de dizer que sim, mas de facto estes protestos locais não irão ser capazes de parar este processo. Não tem havido qualquer processo concertado de luta dos professores desde 1985, altura em que se registou uma longa greve em torno de questões salariais, mas cujo protesto era mais abrangente e se dirigia contra a tentativa do governo Thatcher de tentar quebrar a força colectiva dos sindicatos ? os mineiros também entraram em greve por essa altura ? mas o movimento acabou por sair derrotado. Desde então, a liderança sindical assumiu uma posição de resignação face ao poder do governo. Nessa altura ainda houve esperança de que uma mudança de governo para os trabalhistas pudesse alterar a situação, mas, dadas as actuais condições, não queremos ser o primeiro sindicato a tomar medidas. Um passo importante, no entanto, foi dado este ano na conferência do movimento intersindical a que pertencemos, com uma moção a opor-se à privatização, e em particular ao crescimento das academias, apoiado pela federação de sindicatos de professores da Escócia, documento que foi aprovado por unanimidade. O importante é que a decisão não ficou apenas no papel, existindo a intenção de convocar uma reunião nacional para discutir a aprovação de uma manifestação nacional.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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