Segundo noticiaram alguns jornais, cerca de 250 mil pessoas terão participado nas exéquias de Álvaro Cunhal. Mas dada a surpreendente cobertura feita pelos diversos órgãos informativos, não será excessivo pensar que muitos mais portugueses, progressistas e conservadores, revolucionários e reaccionários, burgueses e proletários, crentes e ateus, seguiram com justificado interesse, natural simpatia ou mera curiosidade o muito que, durante vários dias, se disse, escreveu e mostrou sobre a vida de um político, que também foi escritor e artista, em cuja lápide todos fariam a inscrição da mesma palavra: COERÊNCIA. Estranha unanimidade - sabendo-se que com ela se recobrem juízos tão ambivalentes como são os de quem entende que só por teimosia ou fanatismo, não sendo monje ou anacoreta, um militante comunista que assistiu à queda do Muro de Berlim e à desintegração da União Soviética poderia, durante 64 anos de luta contínua, até à morte, ser fiel à ideia de uma sociedade universal sem exploradores nem explorados; de que o Estado, enquanto prevalecer o confronto de classes, é o único garante da justiça social; de que a proletarização do trabalho leva à alienação dos trabalhador; de que o capital ontem monopolista e hoje global promove a desarticulação do mercado livre; de que a ciência e a técnica, quando avassaladas pelo poder económico para obter a maior produção pelo menor custo, contribuem para a "dispensa" da mão humana e consequentemente para o aumento do número dos trabalhadores "sobrantes" das fábricas, dos campos e dos serviços. Tópicos como estes, de uma ideologia por muitos considerada desajustada do "admirável mundo novo" onde a ordem é "laissez faire, laissez passer" (mas que vai convocando personalidades de diversas ideologias para debaterem as grandes questões sociais em Encontros periódicos, como o promovido, no ano passado, pela prestigiada Comunidade de Santo Egídio, de Milão, sobre o tema "A coragem de um novo Humanismo") resumem a persistente convicção de Álvaro Cunhal de que o homem não tem de ser necessariamente adversário (ou lobo) do homem, por acreditar que o instinto "selvático" (que Freud afirmava ser próprio de uma natureza sujeita às pulsões da libido e da competitividade) pode ser "domesticado" por uma educação que não se limite a reproduzir o existente antes vise a transformar as condições sociológicas que lhe dão forma e sentido. E porque no confronto com uma abundante história de fés renegadas e de ídolos depostos a COERÊNCIA de Álvaro Cunhal - nas ideias, na militância e na vida pessoal - impressionou gente de todos os quadrantes ideológicos, não surpreenderia que na História Política de Portugal (independentemente dos juízos finais sobre o Partido Comunista Português) lhe fosse dado um lugar no estreito espaço reservado aos políticos impolutos que se votaram à Pátria (e à Humanidade) de corpo e alma, dela só podendo esperar (quando muito) o reconhecimento da memória. Diante dessa impressionante homenagem colectiva que o povo português prestou a Álvaro Cunhal (amigo e camarada de uns, adversário e inimigo de outros), ganha todo o sentido aquele pensamento do politólogo americano, de origem indiana, Fareed Zakaria, inserto nas páginas finais de um interessante ensaio sobre as fronteiras do demoliberalismo,"O Futuro da Liberdade": "Quando os líderes da sociedade viviam de acordo com os seus ideais, eram honrados. Quando os traíam, as pessoas ficavam desapontadas. Hoje em dia, pelo contrário, esperamos pouco dos que ocupam posições de poder e eles raramente nos desapontam." Certeiras palavras, num tempo em que "eleitos" e "escolhidos" lembram os "santos-de-pau-oco" do Brasil, como ali são conhecidas algumas imagens religiosas do período colonial, cujo bojo, imperceptível sob as santas vestes, era um receptáculo de oiro e moeda falsa de contrabando. Pela parte que nos toca, o epitáfio que imaginaríamos adequado para identificar o túmulo que Cunhal também recusou ( talvez por recusar o único direito de manter uma parcela de terra improdutiva), consistiria nesta passagem do discurso que Albert Camus, dirigindo-se a cristãos e marxistas, proferiu na cerimónia de atribuição do Prémio Nobel de Literatura, em 1957: "Todas as gerações, sem dúvida, se julgam fadadas para refazer o mundo. A minha sabe, no entanto, que não poderá refazê-lo. Mas a sua tarefa é talvez maior. Consiste ela em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrompida em que se misturam as revoluções degradadas, as técnicas que se tornaram loucas, os deuses mortos e as ideologias extenuadas, em que medíocres poderes podem hoje tudo destruir mas já não sabem convencer, em que a inteligência se rebaixou ao ponto de se fazer serva do ódio e da opressão, esta geração teve que restaurar, em si mesma e à sua vida, e a partir unicamente das suas negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer."
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