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Deus dá o frio sem olhar ao cobertor

É verdade que a nossa sociedade mudou muito. Mudar faz parte da história da humanidade. Quer se queira quer não «todo o mundo é composto de mudança tomando sempre novas qualidades».
No tempo que nos toca viver, além das mudanças materiais, mudou ? talvez mais do que tudo ? o nosso modo de viver, o qual é agora transmudado em espectáculo pelos meios de comunicação social.
Vivemos na sociedade do espectáculo. Expulsos da realidade, somos solicitados permanentemente a viver do espectáculo que os média encenam e nos apresentam. Um espectáculo sempre efémero. Sobe hoje ao palco para ser esquecido amanhã.
A agenda mediática pauta as nossas vidas ao sabor das suas necessidades de venda de espaços publicitários. Para quem comanda hoje a sociedade, o que é determinante não é a vida humana, mas a publicidade. Sem espectáculo não há anúncios. Sem anúncios não há negócio. E sem negócios parece já não haver vida. O viver tende a ser substituído pelo vender.
É nesta sociedade do espectáculo que nós professores somos chamados a educar e a ensinar. Não é fácil. Sobretudo porque nós e os nossos alunos somos permanentemente solicitados a viver de aparências e não de realidades. E a educação vive da realidade. Num inquérito recente, os nossos jovens, não fazem referencia à educação, e, menos ainda, à política, mas indicam os telemóveis como segundo motivo de interesse nas suas vidas.
Alguns pensam que a história, aconteça o que acontecer, corre inevitavelmente para patamares de felicidade cada vez mais elevados. Não me parece que tal movimento seja automático, e, menos ainda, um desígnio divino. Parece mais certo que Deus dá o frio sem olhar ao cobertor, e é a todos nós que cabe conceber, e arranjar, os meios apropriados a cada clima.
Não é inevitável deixar-se levar pela corrente representada pelos interesses das classes hegemónicas. Nem é fatal que a sociedade seja só mercado e espectáculo. Mas se queremos intervir, dando outro sentido às coisas, e à nossa história individual e colectiva, é bom que saibamos escapar ao discurso dominante e tentemos ver o mundo tal como ele é.
A escola e a família, como meios tradicionais de reprodução dos saberes e factores de socialização perderam importância. A publicidade, a televisão, a moda, as conversas virtuais, os contactos via novas tecnologias, tomaram-lhe o lugar. Responder a esta situação é dar uma nova importância aos espaços de convivencialidade de educação social que é preciso criar e desenvolver.
O peso do campo mediático é de tal ordem que temos todos de aprender e de ensinar novas literacias. É preciso aprender a distinguir o que é editado do que não é. O que se aproxima da verdade e o que é falso. O que tem valor humano e o que é virtual. Já não basta saber ler, escrever e contar. É fundamental aprender a descodificar os conteúdos dos meios de comunicação.
O novo capital tende a não ser o dinheiro mas o saber. A separação entre ricos e pobres tende a ser feita entre os que sabem e os que não sabem, entre os informados e os desinformados. Faz-se também pela literacia e pelo preço elevado do real e barato do virtual. Vamos a caminho de uma sociedade alienada onde os ricos possuem o real, os bens verdadeiros, e os pobres o virtual, a imitação ou a imagem deles. Os ricos vivem e os pobres contemplam.
Não podemos esquecer que nunca dispusemos de tanto conhecimento como hoje. E possuiremos cada vez mais ciência, mais saber, mais tecnologia. Sendo assim, devíamos possuir mais liberdade. Não têm de ser nem as tecnologias, nem o mercado, nem os interesses conjunturais do crescimento económico a mandar em nós. Quem deve mandar é a sociedade. Nós é que devemos decidir como queremos viver e como queremos usar o conhecimento. Não temos de ser servos das máquinas, das tecnologias ou dos conhecimentos que produzimos.
O futuro das nossas sociedades depende do que soubermos fazer com as tecnologias e com o  conhecimento que já temos e com aquele que vamos ter. O presente e o futuro será determinado por quem tiver saber e lhe souber dar sentido. É assim a sociedade do conhecimento, na qual a profissão de professor ocupa um lugar central.
O conhecimento acumulado pela humanidade não resolveu ainda os velhos problemas. A fome, a guerra, a doença, a ignorância, a dependência de preconceitos, tanto podem ser dominados como nos podem dominar. Quando nos dominam fazem-nos recuar no tempo para patamares que a humanidade já deixou para trás. Não podemos ignorar que as novas tecnologias nos dão mais poder para o bem e para o mal, depende de nós usá-las com sentido de responsabilidade.
O homem e a mulher ocidentais têm uma história agitada. Continuamos a viver divididos entre a razão e a fé, a ciência e a religião, o estudo e a crença, o dogma e a utopia, a doutrina e o sonho, a esperança e o desespero, a liberdade e o autoritarismo, a democracia e a ditadura, o progresso e o insucesso, a paz e a guerra. Reflexo desta dualidade é a desesperança que reina aparentemente hoje em Portugal. E digo aparentemente porque não estou certo se a actual desesperança é real se virtual, se vivida por nós no quotidiano se construída como espectáculo pelos média.
É verdade que Portugal atravessa um período de baixo crescimento económico. Mas este facto não é nenhuma catástrofe nacional a reclamar pactos de regime, governos de salvação nacional ou qualquer ditadura aberta ou encapotada. Do que precisamos é apenas de orientação política. Precisamos de um rumo que resulte da participação cidadã e das várias propostas que a nossa sociedade for capaz de construir na sua diversidade.
Um país democrático como é o nosso, que ocupa o 28º lugar no ranking mundial de desenvolvimento, com problemas ? naturalmente ? não pode aceitar levianamente a declaração de calamidade nacional por tudo e por nada. Aceitá-lo é aceitar desistir da democracia e entregar o rumo nacional aos interesses económicos hoje dominantes. É isso que os pregadores da desgraça nacional reclamam. Não querem a democracia. Esconjuram o debate. Consideram conservadores ? e para eles pedem as penas do Inferno ? todos os que afirmam que a sociedade ainda tem interesses contraditórios e que uma coisa é ser trabalhador, outra dono do capital. E que só na esfera virtual os problemas são únicos e se resolvem com mezinhas copiadas dos manuais de economia, de sociologia ou de política.
Conservadores são os que possuem uma cultura formada estritamente no quadro estrutural e nos paradigmas neoliberais dominantes. Não conservadores são os que conseguem olhar a realidade imaginando outros quadros, outras estruturas, outros paradigmas, outros caminhos. Portugal não tem de viver, como vem acontecendo, sob a ditadura da classe económica dominante. É de novos olhares e de novos rumos que o país precisa. Sejamos nós capazes de abrir portas e janelas para outros modos de ver e de viver.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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