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O veneno único

[JUSTIFICAM-SE] CUIDADOS COM UMA INDÚSTRIA QUE GEROU AS VACAS LOUCAS, À FORÇA DE CONTRARIAR AS REGRAS ELEMENTARES DA NATUREZA,  FORÇANDO HERBIVOROS AO REGIME CARNÍVORO (incorporando proteína animal nas rações), E OS MILHARES DE MORTOS DO DDT ? IGNORÂNCIA VENDIDA COMO PROMESSA DE FUTURO.

Para lá das indústrias da segurança e armamento, só um sector não viu decrescer as esperanças do capital: a biotecnologia. E um dos filões de maior expectativa é o dos organismos geneticamente modificados (OGM) ou transgénicos, apresentados como a salvação da humanidade e do terceiro mundo esfomeado, além de, naturalmente, o paraíso na terra para as economias que os promovem.
Propondo culturas alegadamente mais produtivas e resistentes a pragas e intempéries, ao amadurecimento e envelhecimento, estas são apresentadas como uma panaceia para agricultores, povos do terceiro mundo e economias frágeis. A biopirataria de variedades do património natural dá lugar, todos os dias, a novos pedidos de registo, que permitiram já patentear milhares de formas de vida, a privatização de um património comum que a natureza disponibilizou ao longo de milénios.
Desde sempre a natureza enquadrou o modo como se foram combinando animais e vegetais que povoaram a terra, dando origem a novas variedades, cujo cruzamento ocorreu entre variedades próximas e limitadas pela barreira de espécie. Diz a indústria dos OGM que, devido a este precedente, não há motivo para alarme quando é o homem a tomar os genes e a misturá-los numa outra ordem, segundo o seu livre arbítrio e as conveniências do momento. Mas embora o Princípio de Precaução aconselhe a que, na ausência de provas de segurança, se evitem riscos, a indústria, à revelia de tudo, decretou unilateralmente seguros os OGM e tratou de os impor a vários países com a prestimosa ajuda das autoridades americanas.
Há razões para pensar que a indústria não diz tudo o que sabe e, pior, não sabe tudo o que diz. A acrescer aos riscos potenciais, existem riscos objectivos que nenhum país soberano deseja correr e que apenas aceita sob pressões ilegítimas. O preço de mercado dos alimentos transgénicos é menor que o dos convencionais, existem dificuldades de escoamento (quem compra um produto com risco, só o aceita mais barato que um sem risco) e a sua disseminação na natureza é irreversível: uma vez libertados, os transgenes contaminarão outras culturas. Está provado que o transgene de uma cultura pode atravessar a barreira de espécie e depositar-se num organismo mais acima na cadeia alimentar, ou contaminar outras variedades da mesma cultura, não sendo mais possível separar culturas transgénicas das demais.
Qualquer das hipóteses de risco que os OGM levantam - ambiental, económico, legal, ético, médico - seria por si suficiente para justificar cuidados com uma indústria que gerou as vacas loucas, à força de contrariar as regras elementares da natureza, forçando herbívoros ao regime carnívoro (incorporando proteína animal nas rações), e os milhares de mortos do DDT - ignorância vendida como promessa de futuro.
Os transgénicos vêm ainda expulsar do mercado os agricultores que produzem produtos biológicos, sem pesticidas e aditivos danosos para o ambiente e para a cadeia alimentar, no topo da qual estão os humanos. A produção biológica é uma alternativa à desertificação galopante que afecta vastas áreas do globo, já que contribui para a estruturação e regeneração dos solos, estimulados a reter os agentes naturais e os nutrientes necessários à fertilidade, gerando ciclos biológicos correctos e sustentáveis. Com a introdução dos OGM, as culturas biológicas serão inevitavelmente contaminadas, perdendo as certificações, o que configura um atentado à concorrência e liberdade de escolha de produtores e consumidores.
Do ponto de vista educativo, são valores e não produtos o que está em jogo na discussão dos OGM. Falar de OGM é falar da perda de liberdade de escolha, do respeito pela natureza e pelos segredos da vida que sustentaram as espécies, incluindo a humana, ao longo de milhões de anos. É rejeitar a possibilidade da paz e coexistência entre os povos, de diferentes opções para diferentes países, com povos e economias, riquezas e debilidades diferentes. Impor os transgénicos, além do potencial suicídio ambiental, é reforçar a pobreza da biodiversidade mitigada, e impor o pensamento único: um veneno único. Confiar o futuro aos transgénicos é admitir a falência de todos os valores.


  
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

Sandra Augusto França

Sandra Augusto França

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