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Outros modos de ser professor

Ser professor já não parece ter a mesma aura de outrora. De uma profissão ambicionada e respeitada, a docência chega hoje a ser encarada como uma mera alternativa ao desemprego (como comprova um recente inquérito realizado aos docentes do ensino secundário, a cargo do Instituto Irene Lisboa e a pedido do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, onde cerca de dois terços dos professores deste nível de ensino admitiram ter escolhido a profissão por "inexistência de outras opções"). Ser professor hoje é diferente em relação ao que era? O prestígio social associado à profissão mantém-se? Ou os tempos mudaram e os jovens procuram hoje actividades que, mais do que conferir um determinado estatuto, sejam melhor remuneradas? Fomos ouvir algumas opiniões.

Todos os dias, por volta das 6,30 da manhã, Elsa Soares deixa o conforto da casa para se aventurar em mais um dia de aulas. Apanha o comboio das sete para Ovar, onde chega cerca de 45 minutos mais tarde. Já a caminho da escola sobra ainda tempo para um café e uma curta leitura do jornal diário. Três, quatro, sete horas mais tarde, conforme o dia da semana, esta professora está de regresso ao Porto, onde reside, cansada de mais um dia de trabalho e de viagens. Um esforço, admite, que por vezes "não compensa".
"O mais desmotivante nesta profissão é talvez o facto de os alunos, a comunidade e o próprio ministério nem sempre reconhecerem o esforço diário de milhares de colegas na minha situação ou em condições precárias de emprego". Quotidianos de instabilidade e de desmotivação, desconhecidos da maioria da opinião pública, que fazem com que considere os jovens professores portugueses uma espécie de "heróis". O estatuto profissional é cada vez mais um documento de "boas intenções", explica com alguma indignação. "Os professores contratados praticamente só têm deveres; os direitos estão a ser progressivamente alienados".
Apesar de, nos últimos tempos, se ter vindo a assistir a uma crescente desconfiança em torno da qualidade do ensino e dos próprios professores, Elsa Soares considera que a imagem positiva que estes têm junto da sociedade está "longe de se esgotar". E não há nada que retire à profissão a sua aura de romantismo: "Mesmo se por momentos pudéssemos estabelecer algum tipo de comparação com outras profissões socialmente relevantes, o acto de educar, pela sua própria natureza, continua a ser um dos mais belos e reconhecidos".
Apesar de concordar com esta opinião, Fernanda Santos, 46 anos, professora do 2º e 3º ciclo, diz que as palavras bonitas não podem inverter a progressiva deterioração das condições de trabalho dos professores, e principalmente dos que agora se iniciam na carreira. A precariedade da profissão é, na sua opinião, o factor que mais tem contribuído para a crescente desmotivação entre os mais novos e para a falta de candidatos que estejam "realmente à altura" do desafio que vão ter pela frente. O que depois acontece, prossegue, é "vermos professores que não se adaptam ou que começam a ficar rapidamente desgastados".
A partir daí, conclui Fernanda Santos, não é difícil gerar-se um efeito "bola de neve" que conduz à progressiva "desconfiança" relativamente à prestação dos professores e das escolas portuguesas, o que, por sua vez, vai "retirando prestígio" à classe no seio da opinião pública.
A avaliar pelas conclusões de um recente estudo coordenado pelo psiquiatra Rui Mota Cardoso sobre as origens de stress nos professores (ver entrevista com Mota Cardoso no número de Maio de 2002 da PÁGINA), as questões relacionadas com o estatuto profissional são as principais responsáveis pelo aparecimento de situações de stress com "algum significado" na profissão, sendo referidas por 33% dos inquiridos. A "estabilidade" e o "gradualismo nas mudanças" são dois dos factores apontados pelos professores como "essenciais à qualidade do seu desempenho".

O mérito de persistir em ser professor

De acordo com a generalidade das opiniões recolhidas pela PÁGINA, a profissão está longe de perder o prestígio que desde sempre a caracterizou, mas longe vai o tempo em que ser professor era uma actividade amplamente reconhecida, valorizada e, por isso, procurada. Os professores mais velhos, que viveram esta lenta transmutação, consideram mesmo que ela perdeu algum "carisma".
É o caso de Carlos Pereira, 52 anos, professor do ensino secundário, que diz ainda recordar-se da espécie de "sentimento de admiração" com que as pessoas olhavam um professor, mesmo tratando-se do seu início da carreira, como lhe aconteceu aos 23 anos. Actualmente, refere com alguma mágoa, "os pais chegam a ir à escola bater nos professores", facto que revela, na sua opinião, a perda do "poder simbólico" que a classe detinha.
"Hoje em dia só escolhe a profissão quem realmente sente vocação ou quem tem algum estômago para aguentá-la", afirma por seu lado Elizabete Soares, 49 anos, professora desde 1974. Quando começou a dar aulas, explica, a docência era encarada como uma "garantia de futuro" e estava equiparada a outras profissões socialmente valorizadas como a medicina ou a advocacia.
Hoje, garante, os mais jovens "não ligam tanto ao prestígio" que isso lhes traga e procuram profissões que, acima de tudo, sejam melhor remuneradas e que não tragam tantas "aflições". Além disso, sublinha, o vínculo vitalício associado aos empregos do Estado é um "mito" que se tem dissipado e que contribui, em grande medida, para o facto de a docência ser olhada com cada vez menor apetência pelos jovens.
E a julgar pela opinião dos próprios, esta professora não andará longe da verdade. Andreia Vasconcelos, 27 anos, desde há um ano com horário completo numa escola dos arredores do Porto, afirma que um dos principais responsáveis pela "crescente desvalorização" da profissão se deve precisamente a quem deveria incentivá-la: o Ministério da Educação.
"Num país onde mais de 15 mil professores ficam colocados no sistema de forma precária não se torna apetecível seguir uma carreira no ensino", diz. O reflexo desta política de desinvestimento está à vista. É que, apesar de a profissão ainda manter o seu prestígio, esta jovem professora considera que as áreas de trabalho mais conceituadas passaram a ser as engenharias e tudo o que se relaciona com o mundo da gestão e das finanças. Parece ser caso para dizer que "ser professor está fora de moda...".
Mas não é só em Portugal que a crise de identidade na profissão atinge níveis preocupantes. Em França, um estudo realizado em Agosto do ano passado pelo ministério da educação daquele país, citado pela Agência France-Press, revelava que, apesar de a maioria dos professores se mostrar satisfeito com a sua profissão, perto de 85% queixava-se que o seu trabalho "não é suficientemente reconhecido" pela sociedade e 51% achava que se verifica uma crescente "desvalorização da profissão".
E os alunos? O que pensam eles da profissão e do papel do professor? Desde quem encare o professor como uma figura ainda respeitada, aos que consideram como uma personagem em "desuso", que um dia será substituída por um computador-professor, as respostas variam e, por vezes, surpreendem.
Apesar de aparecer sempre referida na hierarquia das profissões associadas a um estatuto social mais elevado, foram poucos os alunos que mostraram vontade de trilhar o caminho dos seus professores. Num grupo de oito alunos entrevistados, apenas uma, a Célia Martins, aluna do 10º ano, está certa de querer fazer carreira no ensino, mesmo sabendo que é uma profissão "exigente" e que arranjar emprego na área nem sempre é fácil. De qualquer modo, garante, "a decisão está tomada".


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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