Está a iniciar-se um novo período escolar e começo a pensar que será melhor dizer-vos tudo quanto sei acerca do Berto. Há uns tempos que me tem andado a preocupar. A última vez que apareceu, tive de me sentar numa cadeira de palha e monologar. Foi a primeira noite de luar depois de uma série de noites estreladas. Neste momento, até sei como é Berto. Pálido, cabeça assente num pescoço delgado, testa congeminadora sob um tufo de cabelo espetado. O primeiro assunto que atraiu a minha pobre imaginação e que me tornou preso e ligado para sempre a Berto foi a história do caracol. Pois bem, todos pensamos saber o que é um caracol. Berto, porém, abordou o assunto de maneira absolutamente individualista. Consultemos o seu caderno. Sob o título ?Deus nos abençoe?, lê-se o seguinte ensaio: ?O caracol é uma pequena criatura que se equilibra fazendo sair os cornos. Como recompensa recebe certa quantidade de queijo com que faz queijadas.? Na escola Berto perguntou: ?Quando um caracol vai passear e lhe apetece dar um pontapé numa pessoa, qual é o pé que ele usa?? O professor respondeu: ?Berto, devias saber que o caracol só tem um pé. Porque não estiveste mais atento quando estudámos isso? Ah! Agora me lembro, estavas sentado debaixo da mesa.? Berto não desistiu. Devo ser franco: Berto mente. Quando chegou a casa e lhe perguntaram o que se passara na escola, declarou: ?O professor disse-nos que o caracol dá pontapés com o pé esquerdo, e eu observei que isso era impossível, porque o caracol só tem pé direito. Mas o professor estava distraído: estava sentado debaixo da mesa.? Os caracóis preocupavam o espírito de Berto. Dias mais tarde, perguntou ao tio: ?Se um caracol for à inspecção militar e quiser ter duas pernas para passar o exame médico, pode pedir uma perna emprestada a um amigo?? ?Não, Berto, o amigo dele também só tem uma perna. Ficaria sem nenhuma.? ?Mas, e não poderia esse amigo pedi-la emprestada a um terceiro caracol?? ?Não, porque o terceiro caracol ficaria sem nenhuma.? ?E não podia pedir emprestada a um quarto?? ?É tarde, Berto. Vai para a cama.? ?E o quarto ao quinto?? ?Desaparece, Berto. Vai brincar para o pátio.? ?E o quinto ao sexto?? ?Berto!? ?Tio?? ?Sim?? ?Se eu fosse caracol, havia de ter três pernas, para as poder emprestar aos amigos.? ?Muito bem. Só mostras ter bom coração.? E de facto assim era. Um dia, quando o ruivo Tomás estava a maltratar um gato, Berto disse: ?Espera e verás. Quando Deus te apanhar, mostra-te como é que é.? Contudo, há algo em Berto que levanta suspeitas. Uma vez esqueceu-se de tirar o boné ao entrar na aula. O professor admoestou-o. ?Porque não tiraste o boné?? ?Porque a minha mãe diz que o não devo tirar, senão constipo-me.? Quando chegou a casa, disse: ?Mãe, constipei-me, porque o professor me obrigou a tirar o boné.? No dia seguinte, não foi à escola. Quando reapareceu, o professor perguntou-lhe: ?Porque faltaste ontem à escola, Berto?? ?Porque a minha mãe diz: Oriente ou ocidente, em casa é que está mais quente.? No prosseguimento dos seus estudos, houve uma altura em que o professor explicou como o homem tinha aprendido a defender-se do frio servindo-se de lã e fibras animais, fabricando fatos quentes e coisas para proteger a cabeça. Berto digeriu esta informação e declarou: ?O meu pai diz que usa sempre chapéu, porque, se passar por um lago e cair à água, o chapéu fica a boiar e saberão, assim, onde o procurar.? Continuou a pensar e depois acrescentou: ?Já lhe reservámos um lugar no jazigo de família. A minha tia diz que é muito mais divertido ficarmos todos juntos.? Era assim Berto. Um rapaz simpático, mas? Em breve teremos lua cheia.
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