Para Maria, a neta da minha amiga Ana Maria*
Os senhores leitores devem estar habituados a ler o que escrevo
sobre os direitos das crianças. Não apenas por eu ser da Amnistia Internacional
e colaborar com Human Rights Watch. O motivo real, é que as crianças não têm
apenas direitos à paz, à alegria, à calma, ao respeito por parte dos pais, mas
também à capacidade de serem entendidos por eles e de receberem respostas
adequadas à idade da sua epistemologia.
O direito mais importante de uma criança, é o de ser entendida
dentro do que é a sua experiência, dos seus conceitos. Uma luta infatigável que
tenho empreendido ao longo dos anos e que me tem levado a escrever imensos
livros sobre as crianças, que o leitor pode ou não conhecer. Tenho vivido com
elas na Europa do Norte, Europa do Sul, na África, na América Latina. E foi em
todos esses sítios que aprendi que a criança vive obrigada a suportar os
desafios entre adultos, que mal entende. Como Maria. Que adora a sua mãe e o
seu pai, que gosta de estar aconchegada por eles, de receber palavras doces e
meigas, de brincar à Tölkien com os adultos e não gosta de ser sistematicamente
afastada da presença dos seus, com seu querido e pequeno discurso de amor e de
procura de protecção.
Os senhores leitores leram-me no número anterior deste jornal, quando defendi
os pequenos dos ataques sexuais. Mas, os desencontros emotivos entre os pais,
não são também um ataque à sua dignidade de ser humano, ao seu saber, à sua
capacidade de amar e entender a esse Outro escolhido pela criança? Sim, a
criança é social. Sim, a criança partilha a vida com outras. Sim, a criança
aprende também do mundo de fora do lar. Mas, mais uma vez, esse mundo de fora,
não é a guerra que temos ad portas, não é o debate entre os donos do
mundo? Como é que essa criança é capaz de entender tamanha realidade que paira
no quotidiano, se a sua pessoa epistemologia não é embalada, acarinhada,
explicada, desenvolvida pela atitude alerta dos seus pais e dos outros membros
do seu lar? Direito central de entre todos eles.
Não é em vão que Maria disse um dia a sua mãe: rebobina-me e deixa-me
entrar em ti outra vez, para que tudo torne a ser como era antigamente; para
estar contigo e com o pai; para estar aquecida no teu corpo, para que me oiças
dia após dia, para estarmos eternamente juntas e que tu e o pai, na espera de
mim, estejam contentes porque não sabem quem sou eu, não faço barulho, não
estou presente no vosso caminho da vida. Rebobina-me mãe, e deixa-me
esconder dentro de ti. Maria não sabia de Lynne Murray e Liz Andrews, de
Melanie Klein, de Daniel Sampaio, de Alice Miller, deste escritor que vós fala.
Sabia da sua dor. Da sua profunda tristeza por estar no meio de uma bagatela,
não de Beethoven, mas dos pais. Esses que nunca souberam distinguir entre serem
pais e serem cônjuges, como já falei noutro texto deste jornal. Mas sabia sim
que precisava ser amada, ouvida, passeada, correspondida. Maria queria e quer
colo. Maria queria e quer apoio. Fugiu para sua experiente avó, capaz da
acolher, avó que não percebeu que um grito dela aos pais de Maria,
incutir-lhes-ia fortes reticências, por causa da avó ser, principalmente, mãe.
Maria, será que a solução é se rebobinar? A todas as Marias de todos os
sítios do mundo? Rebobinar, conceito de Maria que, como Human Rightes
Watch, acolho e prometo desenvolver no meu próximo livro. Maria será co-autora,
tal e qual é autora de si própria. Epistemologia da criança, Direito Universal
Inalienável dos mais novos que os adultos estão obrigados a entender, respeitar
e aceitar.
*Dados retirados do meu trabalho de campo durante este verão de
2002.
Bibliografia:
-
Iturra, Raúl, 1994: Échec Scolaire ou École en Échec ?
Têtes dures, têtes vides, L'Harmattan, Paris.
-
Iturra, Raúl, 2002: O caos da criança. Ensaios de Antropologia
da Educação, Livros Horizonte, Lisboa.
-
Iturra, Raúl, 2002: "A epistemologia da Infância. Ensaio de
Antropologia da Educação" in Educação, Sociedade e Culturas, Afrontamento,
Porto.
-
Klein, Melanie, (1961) 1884: Narrativa da análise de uma
criança, Imago, Rio de Jeniro.
-
Tolkien, John, 1954: The Lord of the rings, Faber, Londres.
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Miller, Alice, 1987: The drama of being a child, Virago,
Londres. Há versão castelhana em Tusquets, Barcelona.
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Murray, Lynne e Andrews, Lynne, 2000: The social baby, CP
Publishing, Surrey.
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Sampaio, Daniel, 2002: Lições do Abismo, Caminho, Lisboa.
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