Renato é seu nome. Não sabe dizer quantos anos tem, nem quer
falar sobre a sua origem. Aparenta ter em torno de vinte e poucos anos. Vive na
rua, vestido apenas com uma bermuda e descalço.
O que chama a atenção sobre Renato, além da desconcertante
condição de abandono e de morador de rua, é estar sempre com um caderno e uma
caneta esferográfica preenchendo todas as folhas do seu caderno. Não deixa
espaços em branco. Fica tudo azul.
Uma noite quando eu voltava para casa ele me chamou. Eu nunca havia conversado
com ele, apenas o observava de longe, geralmente do ônibus, quando acontecia do
trânsito estar lento. Mas dessa vez eu estava a pé e ele me abordou pedindo
dinheiro para comprar um caderno. Perguntei-lhe por que queria outro caderno.
Renato explicou que era para estudar e sem parar de colorir a folha com a
caneta, o que faz continuamente, sem mesmo conferir o resultado, completou
afirmando que estudava muito e tudo.
Esse depoimento mobilizou-me tanto quanto a imagem de seu autor no despojado e
contínuo gesto de estudo. O apego de Renato ao estudo,
configurado na sua hermética produção de uma imagem monocromática e,
aparentemente, sem sentido, me parece ser o suporte da permanência das relações
tecidas a partir das experiências educacionais, escolares ou não, do ensinar e
aprender, do estudar tudo, do aprender o mundo. Ações sacralizadas pela
sociedade tanto fora quanto dentro da escola.
Os tempos de hoje, entre seus múltiplos e assustadores desafios, nos encurralam
com indagações cada vez maiores, e muitas vezes inusitadas, sobre as
instituições que defendemos e que, de uma forma ou de outra, se mostram
cúmplices dos impasses e crueldades sociais que nos afligem a todos. Entre
esses, se impõem, irremovíveis, as questões que o abandono de qualquer
indivíduo suscita a qualquer pessoa tomada pelo mal estar desses
momentos de dramática transitoriedade e/ou minimamente sensíveis ao sofrimento
do outro.
Pergunto-me, então, sobre a força dos signos escolares na situação de Renato.
Afastando-me das questões a respeito de sua rede subjetiva, das conexões que o
levaram à imobilizada ação contínua de estudar muito tudo, situação
documentada em suas folhas completamente tingidas de azul, atenho-me na sua
escritura indecifrável e íntima cujo sentido presumível remete, além da
situação estética, porquanto primordial e derradeira ação humana, a signos
peculiares do cotidiano escolar: caneta, caderno e estudo. A história de Renato
a despeito dos seus percursos suspeitamente infelizes que o conduziram a uma
situação de doença que, na absurda lógica individualista, explicaria seu estado
de exclusão, quer significar uma intenção de contato.
Ainda que enraizada no não-lugar de uma aprendizagem inventada, é uma
história/imagem de um gesto paralisado em movimentos circulares, traduzida
absurdamente em direção a um decisivo contato com um mundo, nosso mundo,
desbotado de sentidos no qual as possibilidades de continuação se mostram
mínimas e entre essas, sobra tênue a exigência estética de estudar muito tudo.
O que esse personagem, inteiramente absorto na tarefa de aprender, tem a
ensinar apavora e fascina, pois o que lhe sobrou e lhe marca, da sociedade
instituidora de tantas regulações, é um confuso encontro de signos herdados da
escola, que nesse caso, prova de maneira inequívoca, a existência da força de
seus fios nas tessituras das relações das/nas subjetividades.
Não sei mais nada de Renato. Mas sei que fora, muito longe da escola, ele,
muito possibilita desvelar sobre a instituição escolar.
Entre os indícios que a aparente esquizofrenia de suas práticas oferecem,
está posta a urgência de redimensionarmos o alcance das forças que ainda emanam
da escola e questionarmos que outros usos tais energias ou pregnância poderiam
servir às indispensáveis buscas de superação dos problemas decorrentes desses
tempos atuais.
Tempos de banalização do abandono e exclusão, nos quais indivíduos, ainda que
radicalmente despossuidos, guardam, não à toa, signos que remetem ao campo da
educação, alertando, talvez para a sua significação de últimos férteis campos
da invenção de formas e meios de desmonte de concretudes. Concretudes até então
inexpugnáveis como é a negação do outro, aqui emblematicamente representado
pelo estado de abandono de Renato, que só quer estudar muito tudo, na
minha opinião, para nos ensinar que, fora e dentro da escola, a invenção de um
novo conhecimento e uma nova educação ainda representam um fio de solução.
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