Algures, em 2 de Setembro de 2007,
Querida Alice,
Recordar-te-ás, decerto, da descrição
de “um reino encantado, onde uma fada má transformara os homens
em pássaros”. Pois convirá que eu faça, desde já,
uma correcção. A fada desta história não era má.
Era uma espécie de Oriana atenta às necessidades dos homens, mas
que se cansou de os proteger. Até mesmo a paciência das fadas se
esgotava naquele tempo, um tempo em que muitos homens passaram a ser presa fácil
da palavra corrompida e usada para confundir, quando a palavra humanidade era
escrita com letra minúscula.
Diz-se que o nível moral da humanidade pode ser medido pelo tratamento
dado às crianças, aos velhos e aos animais. Pois, naquele tempo,
havia quem tentasse negar às crianças o direito a uma escola onde
pudessem aprender a serem sábias sem deixarem de ser pessoas felizes.
Naquele tempo, muitos idosos eram deixados nos hospitais, quando os familiares
partiam para férias. No início de cada Verão, cães
e gatos eram abandonados em sítios ermos. E até havia quem ganhasse
dinheiro apostando no cão que mataria outro cão em lutas organizadas
pelos “homens”. Havia quem se divertisse com o sofrimento de animais
nas arenas, quem se deleitasse a destruir ninhos, ou a observar pássaros
definhando em gaiolas. Como aquele pássaro de que nos falava um verdadeiro
homem de nome Rubem Alves, um pássaro encantado que “colhia morangos
à beira dos abismos”, sem temer os abismos ou se deter no voo que
com que os transpunha.
Algumas aves evitavam a proximidade dos homens, por não se sentirem em
harmonia com um tempo infectado de preconceito e maledicência. Encontravam
refúgio em pequenas comunidades humanas que ousavam resistir ao contágio
da crueldade e da competição, doenças do espírito
que não deixavam ver os outros como seres mas como coisas na relação
com outras coisas.
Os avós nunca mentem, enganam-se. Por isso, eu corrijo: “era uma
vez... uma fada que transformou homens em pássaros”. Porém,
logo que a fada lhes entregou os destinos dos seres que habitavam os mares,
as terras e os céus, esses pássaros edificaram cidades e, para
além dos muros das cidades, outras cidades feitas de gaiolas e capoeiras
na costumeira agitação: um bater de asas, um cacarejar aflito,
o sangue a gotejar para uma tigela com vinagre. Indiferentes à dor, sem
uma emoção fingida sequer, sem um ténue sentimento de compaixão,
entre o ovo e a panela, as aves viviam uma existência sem sobressaltos
e... sem vida. A repetição do galináceo martírio
amolecia a firmeza do carácter e quase todas as aves se rendiam ao fatalismo
de um cativeiro feito de grades e mortes prematuras.
Nas escolas da cidade das aves, perdera-se o sentido das infância. Nos
intervalos do cativeiro, o canto transformava-se em grito, a graciosidade do
voo em violentos choques de asas, como se a revolta fosse uma forma superior
do desespero que abrisse caminho para outros céus. Mas as carteiras não
se transformavam em árvores, nem os tinteiros se transformavam em pássaros.
E as avezinhas com defeito eram reunidas num redil, onde rasgavam as asas nas
armadilhas que a escola tecia.
As gaivotas acreditavam que todas as aves conseguiriam voar, se fossem aperfeiçoando
o voo, se lhes fosse permitido voar a seu modo, se não lhes fosse imposto
o ritmo de voo de todas as outras aves. Acreditavam que todas as avezinhas aprendizes
se sentiriam seguras no regresso ao ninho após cada voo curto, que se
alargaria devagarinho e à medida do debelar dos medos e do sarar das
penas.
As gaivotas buscavam o pássaro tão próximo do que se pudesse
ser. Cuidavam dos pássaros caídos dos ninhos, mercê do vento
ou do desleixo dos progenitores. Acolhiam aves rejeitadas por escolas iguais
a todas as escolas. Cumulavam de afecto as asas feridas. Mas pensavam ser urgente
que todos os pássaros-mestres se encontrassem, reflectissem juntos o
futuro da escola e resolvessem o problema das aves excluídas.
Após muitas tentativas, conseguiram organizar uma reunião, por
ficarem os pássaros instrutores dispensados da função para
o efeito. Mas aos pedidos de cooperação, um pássaro instrutor
porquenão respondeu porque não... e pronto! Outro porquenão
respondeu que depois diria alguma coisa, porque já se fazia tarde para
levar os filhotes a lições extra para afinar o canto. Outro disse
logo que não lhe sobrava tempo para aulas extraordinárias. Outro
ainda perguntou se lhe aumentariam a ração de alpista pela prestação
do serviço. Um porquenão comentou para o lado que deveria haver
escolas especiais para as aves especiais. E lá se foi a par dos restantes,
rogando pragas às gaivotas pelo tempo que a fizeram perder, e ameaçando
atiçar os progenitores das aves aprendizes contra as gaivotas e as suas
estranhas ideias.
Crês, Alice, que as gaivotas terão desanimado ou mesmo desistido?
Não, porque elas sabiam que até o suave contacto de uma gaivota
no cimo da Torre da Pisa pode acelerar a sua queda...
Volto breve e com outras histórias.
O teu avô José.
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