Assalto à democracia, por fora e por dentro
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- Que podemos aprender com os crimes terroristas de 11 de Setembro último?
Muita coisa seguramente. Mas coisas muito diferentes segundo o PROBLEMA que
se formule a partir desses acontecimentos.
- Há, porém, pseudo-problemas, modos de pensar que, em vez de fazer avançar
o conhecimento, contribuem tão só para bloquear essa possibilidade. Se nos
perguntarmos, por exemplo, quais são as "causas" sociais ou políticas ou económicas
ou religiosas ou culturais ou civilizacionais dos crimes de 11 de Setembro,
não iremos longe, porque estamos a fazer a pergunta errada. Seja qual for
a "causa" ou "causas" que elegermos (e.g. a política externa dos EUA, a desigual
da distribuição da riqueza entre os países, o choque de civilizações e/ou
de culturas, o fanatismo religioso, a "globalização", o imperialismo), o veredicto
final será sempre o mesmo: "confusão de categorias", um vício de raciocínio
que foi há muito identificado naquela ciência injustamente desprezada que
dá pelo nome de lógica. O crime não tem "causas" desse tipo, apenas móbeis
ou motivações (e alibis variados), porque é praticado por indíviduos concretos,
não por sociedades, culturas, civilizações, classes, religiões. Julgando falar
nas suas "causas" falamos, pois, no melhor do casos, nos seus móbeis.
- Mas se quisermos extrair desses atentados uma lição útil - digo, algo que
contribua práticamente para tornar o mundo que vivemos um lugar menos violento
e menos inseguro - o problema mais importante que se pode colocar prende-se
não tanto com os móbeis ou motivações dos que planearam e executaram esses
crimes, mas com as CONSEQUÊNCIAS desses crimes, sobretudo aquelas consequências
que têm por efeito travar qualquer avanço para a democracia global, a única
defesa eficaz contra a guerra global e o terrorismo global.
- Recapitulemos então os factos antes de passar às perguntas que vale a pena
fazer. Em 11 de Setembro passado aconteceu algo que nunca tinha acontecido.
Um grupo de comandos suicidas desviou quatro aviões comerciais de passageiros
no espaço aéreo dos EUA, a mais poderosa nação-Estado do mundo de hoje. Dois
aviões rumaram para a capital política deste país, Washington D.C, e dois
para Nova Yorque, a sua capital económica e financeira. Servindo-se dos aviões
como se fossem gigantescos mísseis, os piratas do ar atingiram o quartel-general
das forças armadas dos EUA, conhecido por "Pentágono", símbolo do seu poderio
militar, e as duas torres gémeas do "World Trade Center", um dos símbolos
da sua supremacia económica e financeira. Dos atentados resultaram a morte
de mais de 5000 pessoas (na sua grande maioria civis e representando mais
de 60 nacionalidades) e a destruição total das referidas torres. Provávelmente
por intervenção de alguns passageiros corajosos, um dos aviões sequestrados
acabaria por despenhar-se antes de atingir o seu alvo em Washington, que tanto
poderia ser o Capitólio, sede do Congresso (Senado e Câmara dos Representantes),
como a Casa Branca, residência do Presidente da República desse país. A autoria
do atentados, que ninguém reivindicou durante dois meses, foi atribuída à
organização Al Qaeda, chefiada por um milionário saudita de nome Osama Bin
Laden, já implicado em anteriores atentados a embaixadas e navios de guerra
americanos. Este, porém, segundo o "Sunday Telegraph", admitiu, em recente
gravação vídeo, ser o autor dos crimes de que era acusado e prometeu repeti-los
sempre que tivesse oportunidade.
- Que mostram estes factos ? Que uma rede secreta bem oleada com milhões,
protegida por vastas cumplicidades e constituída por homens resolutos e com
tanto desamor à sua própria vida e à vida alheia (com excepção, talvez, da
dos seus pais, namoradas, filhos e amigos de infância) como aquele que temos
pelos mosquitos que esmagamos quando nos incomodam, pode espalhar o terror
e o luto em qualquer ponto do planeta, mesmo que seja a mais poderosa nação-Estado
do planeta. Mais: exactamente por ser a mais poderosa, poderá ser o alvo preferido
deste tipo de terroristas, uma espécie de taluda para os mais audaciosos.
- Dou de barato que todos conhecem a reacção dos actuais governantes dos
EUA aos atentados do 11 de Setembro: uma ofensiva policial e política para
secar as fontes de financiamento da Al Qaeda e capturar os seus militantes,
mas também uma guerra para derrubar o regime talibã do Afeganistão que dava
guarida territorial e apoio logístico a essa organização e ao seu chefe. No
momento em que escrevo (28 de Nov.), o regime talibã já não existe e Osama
Bin Laden anda a monte.
- Tudo voltou então (ou está prestes a voltar) a ser quase como era antes
do 11 de Setembro ? Citemos o correspondente do "Expresso" em N. Iorque, Tony
Jenkins: "Na semana passada Bush assinou um decreto presidencial, criando
tribunais militares para julgar terroristas, que vão contra a Constituição
e as regras processuais. Só a ele caberá decidir quem deve ser apresentado
a estes tribunais. Os promotores e juízes militares, que decidem o destino
dos acusados, reportarão a ele, como comandante supremo das Forças Armadas.
Os casos podem ser julgados à porta fechada. Provas pouco fundamentadas que
um tribunal civil poderia considerar obtidas ilegalmente poderão ser permitidas.
Para o réu ser condenado ou sentenciado à pena de morte, só é necessária uma
maioria de dois terços dos membros do tribunal. E não terá direito de recurso.
Ao mesmo tempo, o ministro da Justiça, John Ashcroft, continua a prender centenas
de muçulmanos cuja identidade não revela. Ordenou às esquadras de polícia
de todo o país para deterem todos os homens imigrantes islâmicos, àrabes e
asiáticos do sul, entre os 15 e os 33 anos, que chegaram aos EUA nos últimos
2 anos. Um total de 5000 homens devem ser interrogados.Ashcroft também deu
instruções às prisões para gravarem as conversas entre os detidos e os seus
advogados" (24.11.01)
- Que mostram estes factos ? Que está em curso um assalto à democracia, num
dos poucos lugares do mundo onde, à custa de tremendos combates, ela se conseguiu
implantar. O assalto começou "por fora" e continua "por dentro. É o diagnóstico
que muitos fazem, tanto à esquerda como à direita do espectro político americano.
O mesmo Tony Jenkins escreve: "William Safire, antigo conselheiro do Presidente
Richard Nixon e um dos mais respeitados pensadores republicanos do país, está
revoltado:"Intimidados por terroristas e inflamados por um desejo de justiça
sumária, estamos a deixar que Bush avançe para substituição do Estado de direito
americano por tribunais arbitrários:" O historiador Alain Brinkley vai no
mesmo sentido: "O habeas corpus acabou e o julgamento com júri também. Este
é um dos mais extraordinários assaltos às liberdades cívicas na nossa História".
Laura Murphy, directora da União Americana da Liberdades Cívicas, alerta para
"a prova perturbante de que a Admnistração não está nada disposta a observar
as garantias previstas nas leis e que são a essência da nossa democracia.
E o "New York Times" grita que "o Sr. Bush está a corroer os próprios valores
e princípios que procura proteger, includindo o Estado de direito". E talvez
valha a pena dizer a quem ache que o desfecho deste conflito não nos diz respeito:
se não conseguem imaginar o que seria o mundo se a democracia alguma vez fosse
aniquilada nos EUA, experimentem ler o romance "O Tacão de Ferro" de Jack
London. Já é velhinho, mas continua actual.
(Por motivos de programação da nova revista que sucederá
a este jornal, o "Fidebeque" encerra neste número. Os outros dois redactores
desta rubrica, António Lopes e Luís Souta, pedem-me que apresente em nome dos
três as nossas despedidas aos leitores desta rubrica, agradecendo-lhes a atenção
que nos dispensaram. Ao director e editores do jornal o nosso obrigado pelo
acolhimento que aqui nos deram).
José Catarino Soares/ Instituto Politécnico de Setúbal
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 10, Dezembro 2001
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Autoria:
Instituto Politécnico de Setúbal
Instituto Politécnico de Setúbal
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