"Euntes in mundum universum, predicate omini creature"
Padre António Vieira
Se um problema emergia do comum dos dias, aquele professor não enjeitava responsabilidades.
Se uma criança denotava embaraço, jamais alegava "não ter recebido formação
para casos especiais", não atirava culpas para cima do sistema, nem as atribuía
a factores genéticos ou ao baixo nível económico e sociocultural da família
do cachopo.
Aprendia errando e a cada "dificuldade de ensinagem" fazia corresponder
uma oportunidade de aperfeiçoamento da sua prática profissional. Ao encontrar
"soluções" para o desenvolvimento das crianças, achava maneiras de se melhorar.
Porfiava num auto-didatismo fundador de uma outra cultura profissional, num
percurso de formação experiencial muito peculiar
De modo que, quando foi convidado para "colaborar" com uma instituição de formação
inicial de professores, acolheu o convite com alguma desconfiança. Via a universidade
como um lugar mal frequentado, a crer naquilo que um jovem amigo, recém entrado
na dita, lhe confidenciara: "Pensei que na universidade o ensino, por assentar
mais na nossa responsabilidade, fosse melhor. Pelo contrário: a faculdade é
muito grande, ninguém se conhece e o ensino é normalmente mais desumano".
Movido pela curiosidade, motivado pelo ensejo de influenciar jovens espíritos,
ou fosse lá porque fosse, aceitou o desafio. Na escola (dita) "superior", encontrou
o que já esperava, mas também conheceu professores dissonantes, verdadeiros
mestres.
Na sua primeira "aula", foi empurrado para uma posição magistral, colocado perante
um auditório repleto de jovens e adultos alinhados em filinhas, de costas voltadas
uns para os outros. Nessa primeira "aula", compreendeu as razões pelas quais
os professores que o cego sistema de colocações fazia aportar à sua escolinha
diziam que "para saberem trabalhar naquela escola, precisavam de tirar um
curso". Se, antes, ele não percebia de que "curso" se tratava, não
tardou a perceber.
Feitas as apresentações - e porque não nutria particular afeição por "aulas-comícios"
- lançou a interrogação sacramental:
- "O que vamos fazer com o tempo de que dispomos?"
Entre a estupefacção e alguns sorrisos cínicos, os candidatos a professores
- que já se preparavam para copiar acetatos - ergueram o olhar para a estranha
criatura.
- "Ó professor, está a falar a sério?"
- "Claro!" - respondeu o professor - "O que quereis aprender?"
Os estudantes entreolharam-se. Depois, foi o silêncio, até que um coro titubeou:
- "Ó professor, nunca ninguém nos perguntou isso!"
A explicação (a trágica explicação!) estava dada. Ao longo de nove anos de aprendizagem
básica, três anos de aprendizagens secundárias e outros três de sabe-se lá o
quê, nunca um docente lhes perguntara: "O que quereis aprender?".
Nas "aulas" seguintes, se propunha aos futuros professores uma reflexão sobre
a prática à luz de uma qualquer teoria, respondiam invariavelmente:
- "Ó professor, lembro-me de ter dado essa matéria, mas já não sei nada disso.
Foi empinar para vomitar no exame e depois esquecer. E, se pedimos que nos falem
da lei x, do método y, de coisas que sentimos que vão fazer-nos falta, daqui
a um ano, quando tivermos à nossa frente crianças para ensinar, respondem-nos
que o assunto não é do âmbito daquela disciplina".
Caído o verniz de teorias mal digeridas, completamente alheios à heterogeneidade
que os rodeia, preocupados em sobreviver, os novos professores tendem a reproduzir
a única verdadeira escola de que conhecem a gramática: uma escola selectiva
cuja divisa é "faz como vires fazer". A atracção pelos méritos do passado é
a norma. Não nos espantemos, pois, com o episódio que se segue.
O Bruno é aluno numa escola dos subúrbios de uma grande cidade. Pelo Natal,
a ficha de informação sentenciava: "o aluno está cada vez mais atrasado em
relação à turma". Enquanto assinava a ficha, a mãe do Bruno expôs a sua
preocupação à professora, ao que esta respondeu:
- "O seu filho precisava de "ensino especial", mas não temos. O Bruno está
atrasado e olhe que já não é de agora! Começou a atrasar-se no ano passado,
logo na primeira classe. Ele e mais três alunos não acompanhavam os colegas
na leitura e nas contas de subtrair. Durante alguns dias, eu ainda o pus sentado
ao lado da minha secretária. Mas acabei por pô-los de lado, porque não podia
prejudicar os outros".
Quinhentos e catorze anos passados sobre a data da publicação do primeiro livro
impresso em Portugal, cá vamos cantando e rindo neste país de analfabetos.
Sobram os que não conseguiram encaixar o "e vão quatro" e agora temem
a substituição da moeda pátria pelo euro. Pontificam os analfabetos pedagógicos
que "os puseram de lado". Abundam os analfabetos que conseguiram "acompanhar
o resto da turma no juntar das letras" e que, por tortuosos itinerários
feitos de mnemónicas e copianços, alcançaram o canudo.
Já há muitos anos, o mestre Agostinho da Silva nos recordava que "a maior
parte dos professores que combatem métodos novos fazem-no porque os desconhecem,
ou porque todos à volta se conservam na rotina (num) próspero analfabetismo
em que uma boa parte não sabe ler e outra boa parte não entende o que lê"
. Para lá da retórica que enche as sebentas, é ainda considerado "bom professor"
aquele que apenas domina cientificamente os conteúdos disciplinares a transmitir
em aulas que não engendram novos dispositivos pedagógicos, mas que são autênticos
preservativos pedagógicos.
É conhecido um outro episódio, protagonizado por uma jovem assistente que, pretendendo
calar a intervenção de uma aluna que criticava a falta de preparação pedagógica
dos docentes e a "seca que eram as aulas", a questionou:
- "Quem escolhia a menina para ser seu professor? Um bom pedagogo que não
soubesse a matéria, ou um mau pedagogo que soubesse muito bem a matéria?"
Esqueceu-se a mestra de outras combinações: "o bom pedagogo que sabe a matéria"
e "o mau pedagogo que não sabe a matéria". Ela lá saberá porquê.
José Pacheco / Escola da Ponte, Vila das Aves
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