Há muitos, mesmo muitos anos, conheci um professor que me afiançou
nunca ter defrontado problemas de indisciplina. Confidenciou-me que, no primeiro
dia de aulas de cada ano lectivo, "dava toda a corda à turma"
(sic), esperava que a desordem se instalasse e que o líder da desordem
se revelasse. Então, "parava a romaria e aplicava no mariola
uma sova monumental, que era remédio santo para todo o ano" (sic).
Recentemente, foi-me concedido o privilégio de reconhecer
a distância que vai da violência "disciplinadora" desse
professor de antanho à ternura dos braços de uma Ana (Joana de
nome próprio, mas esse é um segredo que fica entre nós...).
A Ana viveu, por dentro, o quotidiano de um bairro degradado.
Entre outros dramas, conheceu o de uma criança por todos considerada
"violenta", hóspede quase permanente de um "quarto
escuro", onde cumpria longas horas "de castigo". Porém,
nem o negro isolamento domava a juvenil fúria. Em sucessivas vagas, a
soco, a pontapé, à dentada, forçava a fuga das companheiras,
e abreviava o regresso ao "quarto escuro".
Recém-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele círculo
vicioso de violência, "crime e castigo". Poucos dias decorridos,
aproveitando um momento de distracção da endiabrada rapariga,
prendeu-a nos seus braços. A pequena ainda esperneou, mas sem conseguir
escapar ao amplexo. Resignada, julgou chegado mais um momento de recolher à
punitiva escuridão. Tremeu quando a Ana a beijou na face. Correu para
novas tropelias, logo que a Ana a largou.
Não levou muito tempo a regressar. Ia direita ao "quarto
escuro", de orelha pendurada, quase arrastada pela vigilante que a surpreendera
em flagrante delito. De novo, a Ana intercedeu por ela. A vigilante largou-a
nos seus braços. A pequena já quase não opôs resistência.
Sentiu o abraço como abraço e recebeu o beijo sem frémito
aparente. Mas, sem demora, foi procurar mais sarilhos e voltou ? qual pássaro
há muito sem ninho ? ao aconchego dos braços e ao afago dos lábios
da paciente Ana. Algumas idas e vindas depois, o íman do afecto prendeu-a
definitivamente. A pedagogia do abraço vencera a da punição.
A vida dos professores está recheada de acontecimentos
dignos de narrar e, como não há duas sem três, aqui deixo
registo de outra peculiar experiência.
O primeiro dia de escola começou num vaivém entre
vinte e tal fedelhos a chorar baba e ranho e meia dúzia de ansiosas e
renitentes mães, coladas ao umbral da porta, ora espreitando a descendência
pelos interstícios, ora penetrando para assoar o nariz do herdeiro ou
dar-lhe um beijo de despedida.
Respeitosamente, o professor encaminhou as ansiosas progenitoras
no sentido da saída. Ao cabo de uma longuíssima meia hora, logrou
encostar a porta: "com licença, desculpe, faz favor, minha senhora,
sim, sim, pode ficar descansada, claro, pois, é natural, coitaditos,
não é? As gotas, pois, não me esquecerei, pois, dá-me
licença, se fazem favor, não custa nada, daqui a pouco já
vão ao recreio, sim, minha senhora, não me esquecerei, concerteza..."
Com mão firme e jeitinho conseguiu fazer descolar da porta os dedos
da última mão da última mãe, deitou um olhar àquela
que seria a sua primeira "primeira classe" e respirou tão profundamente
quanto a ansiedade lho permitia.
Cuidou de acalmar os pequenitos que, a todo o momento, ameaçavam
retomar o choro. Depois da tempestade, parecia ter chegado o merecido sossego.
Contou os gaiatos. Faltava um.
- O senhor professor dá licença? - e logo algumas
das já aquietadas mães aproveitaram para ensaiar um retorno
e lançar ansiosos olhares sobre a prole, que retomava o ritmo do soluçar
e desembocava numa nova e ruidosa choradeira.
Apercebendo-se de que a frente de batalha não se encontrava
lá dentro mas fora de muros, o professor alterou a estratégia.
Saiu da sala, fechou a porta atrás de si e a ela resolutamente se encostou,
qual Mem Martins ao invés. O que viu fez com que o seu semblante não
reflectisse tanta amabilidade como há meia hora atrás. Uma suposta
mãe debatia-se impotente perante investidas e pontapés do seu
rebento, acompanhadas de tais imprecações que fariam corar de
vergonha um surdo.
- O senhor doutor do posto disse-me que ele tem sistema nervoso. O
meu marido até ouviu ? não foi, ó Quim? ? que a gente
não o pode contrariar. Eu ainda pensei em levá-lo ao especialista
dos nervos, mas tenho lá posses! ?Inda se a Caixa me desse um suicídio!
Já entreguei a papelada há que tempos... e nada!
- O garoto é levado do diabo ? comentavam, entre dentes,
alguns dos presentes.
Metê-lo assim na sala, nem pensar! ? pensou o
professor. Pegou no puto ao colo e, a custo, foi com ele até ao alpendre
das traseiras.
Quando se encontrou a sós com o miúdo, sentou-o
na beira do muro e falou-lhe baixinho e ao coração. Disse-lhe
tudo o que é possível dizer-se para sossegar o espírito
de uma criança. E o infante presenteou-o com um chorrilho de impropérios:
- Deixa-me, filho da p...! Deixa-me!
O professor respirou fundo, contou até vinte, voltou
a respirar mais fundo e contou mais uma vez. O professor não era dos
que acreditava no ditado popular que diz que "moço que não
é castigado não será cortesão nem letrado",
mas já começava a desesperar. O fedelho esperneava e gritava:
- Deixa-me, filho da p...! Larga-me!
A mão do professor foi mais lesta que o pensamento e
só parou na face do pequeno. Mas foi a mesma mão que a acariciou
e enxugou as últimas lágrimas, enquanto os seus braços
envolveram a criança num abraço penitente.
O miúdo percebeu que a sua performance tinha acabado
e que com aquele adulto ? a seus olhos bruto e terno ? a cena do grito e da
canelada não surtia efeito. Por receio de novo tabefe ou por razões
que a razão desconhece, o pequeno lá foi, a par do novo mestre,
sala adentro, como se nada de especial tivesse sucedido.
à sua passagem, uma mãe ainda comentou:
- Este professor é que tem jeito para as crianças!
Equidistante dos outros dois episódios, este confirma
o que já dizia um poeta: as mãos " são a guerra
e são a paz" .
Apercebo-me de que o texto já vai longo e de que ainda
não lhe juntei palavras por detrás das palavras. Juntar-lhe-ei
apenas uma recomendação bibliográfica. Se é verdade
que bater numa criança é um acto de cobardia, também sabemos
o que Anton Makarenko escreveu no seu "Poema Pedagógico". Quem
ainda o não leu, não sabe o que perde. Está lá tudo.
José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves
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