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Reflexões sobre o racismo

De repente, os portugueses começaram a falar do "seu" racismo. Tornado país de imigrantes, Portugal vê-se agora imerso em situações, análises, debates e conjecturas que a França, por exemplo, conheceu logo a seguir às independências das suas colónias de áfrica, pela década de 60, quando imigrantes árabes e negros começaram a afluir, em larga escala, à antiga Metrópole, criando "guetos" problemáticos, como o de Marselha, onde, em 1973, a morte de um taxista francês por um imigrante argelino desencadeou violenta reacção antiárabe.

O nosso país, miticamente considerado de "brandos costumes" e "espírito convivente", já sem memória da necessidade que teve, no século XVI, para contrabalançar as saídas do povo para as Descobertas e Conquistas, de receber escravos africanos que chegaram a atingir 10% da população de cidades como Lisboa e Évora, - e que foram "integrados", naturalmente, por absorção de um povo não-racista ou, pelo menos, de uma sociedade não preconceituosa em questões de raça, - vê-se, de repente, "invadido" por ondas de imigrantes de várias origens (mas notoriamente da áfrica lusófona) que prometem reconstituir o panorama sociológico de há quinhentos anos.

E, diante de alguns casos de mais difícil integração ou coabitação, eis que a Comunicação Social, por um singular sentimento muito lusitano que é uma espécie de autognose feita de surpresa, revolta, culpa, expiação e fraca auto-estima, dá o alerta: "Afinal, também somos racistas como os outros todos!"

Há as excepções, é claro, e nelas se julgam incluídos todos os observadores de que "o rei estava nu" e se excluem até de uma conspícua observação produzida, recentemente, pela jornalista Isabel Stillwell: "Há racistas empedernidos, há racistas assumidos, há racistas politicamente correctos, há racistas que quase o não são, mas provavelmente todos somos racistas. A cor é apenas o sinal mais evidente da diferença, porque o nosso racismo na verdade é contra aquele que não é como nós - preto, branco, mais alto, mais baixo, que cospe na rua ou usa o boné virado ao contrário. O nosso racismo, que se faz sentir de maneiras mais ou menos subtis, nasce do nosso medo do desconhecido. E a única forma verdadeira de o vencer é dar o desconhecido a conhecer."

áH Por aqui se vê já que também o racismo pode ser tipificado conforme o perfil do racista (adiante veremos que se chama racismo a coisas diferentes), o que recorda a propósito um comentário que sobre uma definição de Albert Memmi do racismo faz François de Fontette no seu excelente livro O Racismo: "Esta fórmula parece-nos proporcionar, preferentemente, uma explicação de carácter psicológico ou moral do racismo do que propriamente defini-lo."

Sustentava Memmi: "O racismo é a valorização, generealizada e definitiva, de diferenças, reais ou imaginárias, em proveito do acusador e em detrimento da vítima, a fim de justificar os seus privilégios ou a sua agressão."

Esta definição, que torna o racismo circunstancial, serve perfeitamente para o reconhecer como um "caso novo" em Portugal - novo porque a história não regista uma "caminhada racista" (a expressão é de Fontette) do povo português, embora as suas elites o tenham sido algumas vezes, situando-se a última nos alvores do Estado Novo, designadamente no contexto da política colonial.

O que aconteceu, então, para haver "tanto" racismo agora?

Há um dito popular, para esconjurar os maus agoiros, que reza, mais ou menos, assim: "Fala-se no mal, e ele aparece." Donde um qualquer filosofante poderia extrapolar:"Querem que uma coisa exista? Ponham-lhe um nome!"

Uma coisa sabemos da vulgar experiência: as crianças de tenra idade, antes de irem pela primeira vez à rua ou para a escola, não são racistas. E por uma razão simples: porque são sociologicamente "daltónicas" e, não sentindo ainda o imperativo da competição, não têm necessidade de se afirmar "contra" ninguém nem de "marcar" o opositor, como depois aprendem dos pais ou dos vizinhos. E por isso nunca se lembrarão de dizer a um companheiro: "vai para a tua terra!", que seria áfrica se o opositor fosse negro na Europa, ou a Europa, se fosse branco em áfrica, - ainda que ambos tivessem nascido na terra onde, pela cor da pele, foram julgados estrangeiros.

Quem viveu na áfrica lusófona sabe que, no terreiro ou no quintal, os filhos do patrão branco, enquanto crianças, brincavam descomplexadamente com os filhos da criada negra e que era, muitas vezes, no colo amigo desta que se aninhava o menino ou a menina a pedir protecção "contra" a reprimenda da mamã ou do papá. E que meninos de todas as cores ouviam com o mesmo temor ou fascínio as estórias fantásticas de mukixis e cazumbis, contadas pelos mais-velhos, à roda da fogueira, quando ainda os não perturbava os sonhos de liberdade, de que fala o poema de Manuel Rui...

A noção das "diferenças" só aparece quando Eu tenho necessidade (porque a sinto ou alguém ma sugeriu) de me distinguir do Outro, o que leva a impor-me por meio da força ou do poder ( expresso em estatuto social, situação económica, fé religiosa, etc.) que me "superioriza".

Onde os indivíduos têm a mesma raça (as pessoas têm a raça que parecem...), a "diferença" que há entre Mim e o Outro é, em geral, a diferença de classe, ou preferindo um termo menos "político", de estatuto social: há os ricos e os pobres, os filhos-família e os filhos-das-ervas, os meninos-bem e os meninos-mal, os chamados e os escolhidos, os tolerados e os suportados - que durante séculos não se misturaram, ou misturaram-se, ocasionalmente, tanto ou tão pouco como o branco com o negro, o pardo ou o amarelo. Pela discriminação social se identificaram a nobreza e a plebe, o cavaleiro e o vilão, o cristão e o judeu, o senhor e o servo, o amo e o escravo. E não foi por humanista espírito de abertura ao Outro (mas por estratégia de ocupação e povoamento) que Afonso de Albuquerque ou o Marquês de Pombal estimularam o casamento de portugueses com os naturais da índia e do Maranhão...

O termo racismo é muito mais recente do que geralmente se supõe. Ainda segundo Fontette, o Dicionário Littré, de 1882, ignorava-o. E o de Paul Robert circunscreve-o a uma "teoria da hierarquia das raças, fundada sobre a crença de que o estado social depende dos caracteres raciais e que conclui pela necessidade de preservar a raça superior do cruzamento com outras raças; comportamento de acordo com esta teoria."

Era esta a compreensão "científica", nos passados anos 30, do nosso antropólogo A.Mendes Correia e do ministro de Salazar, Armindo Monteiro, que nunca se sentiram apologistas daquele execrável sentimento discriminativo que, sob o nome de racismo, se vulgarizou desde o fim da Segunda Guerra Mundial, por suscitação da doutrina e prática nazis.

Com o início dos movimentos anticolonialistas, o racismo assumiu várias configurações, - Agostinho Neto dizia que "o racismo não tem cor" - conforme se aplicava na Europa, na áfrica ou na América, recorrente de práticas antigas (como a escravidão do Negro) e das lutas pela dignificação do Negro-humilhado-de-todo-o-mundo, que inspiraria movimentos culturais (como o da Negritude e do Pan-Africanismo), desencadeados durante as primeiras décadas do século transacto.

De resto, o próprio Agostinho Neto deu um exemplo pessoal de anti-racismo, casando com uma branca portuguesa. Isto é particularmente significativo por várias razões: a primeira, porque era vulgar os altos dirigentes africanos, casados com brancas enquanto viveram na Europa, trocarem-nas por negras quando regressados a áfrica; a segunda, porque num continente onde a poligamia é uma prática comum, Neto foi fiel à única mulher da sua vida; a terceira, porque não hesitou em dar a maior prova dessa idelidade e coerência incluindo num livro revolucionário como é "Sagrada Esperança" dois poemas românticos, que destoavam do contexto, dedicados à esposa, a quem oferecia "bouquets" de rosas. Como ninguém imagina Agostinho Neto um pinga-amor, só podia ser um recado...

Nas ambiguidades consentidas pelo termo, chamaram os Negros racismo ao processo de dominação, inferiorização e discriminação exercido pelos Brancos, em proveito próprio, e depois chamaram os Brancos racismo à reacção dos Negros explorados, humilhados e ofendidos, que Sartre considerou como "um racismo anti-racista", mesmo quando assumia uma teorização extrema, de inspiração messiânica, como era a do negro americano Malcom X, nos anos 60, pensando nos Estados Unidos e na "Ku-Klux-Klan": "A integração nunca se fará. Ela pressupõe que as duas raças sejam iguais, a negra e a branca. Ora tal não se verifica. O homem branco é, por natureza, um demónio e deve ser destruído. O homem negro herdará a Terra. Tomá-la-á sob o seu poder, reencontrando assim a posição de que desfrutava há séculos, quando os demónios brancos se arrastavam nas quatro patas, no interior das cavernas da Europa.(...)"

No pólo oposto, mas defendendo o mesmo postulado de Malcom X sobre a impossibilidade da coabitação do Branco e do Negro, o "pai" espiritual do "apartheid" na áfrica do Sul, Daniel Malan, que foi pregador da Igreja Reformista antes de aceder ao cargo de primeiro-ministro em 1948, escrevia em 1954: "A diferença de cor não é mais do que a manifestação física do contraste que existe entre dois modos de vida inconciliáveis, entre a barbárie e a civilização, o paganismo e o cristianismo. Foi assim nas origens. Assim continua a ser agora."

Mas a história recente mostra que o racismo não exprime apenas as diferenças somáticas e culturais existentes entre Brancos e Negros deslocados dos seus países de origem. Há uns três anos, na própria capital do Brasil, - onde alegadamente funciona uma "democracia racial", que, em rigor, está longe de o ser - um grupo de filhos-família divertiu-se torrando, com gasolina e fogo, alguns jovens índios (os genuínos "filhas-da-terra") da etnia pataxó. Neste caso, o racismo foi tanto um resultado do preconceito classificativo da "raça" do Outro e do seu estatuto social como do espírito de violência gratuita que hoje superabunda em todo o mundo "civilizado".

Na verdade, o racismo não tem fronteiras e existe até dentro da mesma raça ( e, aqui, é bom distinguir "raça" de etnia ou nacionalidade): veja-se o que ocorre hoje mesmo na Europa, na ásia e na áfrica. Chame-se-lhe nacionalismo, chauvinismo, regionalismo ou tribalismo, o efeito é o mesmo: a intolerância frente ao Outro que não é igual a mim: no corpo, na língua, na religião, nos costumes ou nas crenças. E, noutro plano das sociedades desenvolvidas: no simples direito à cidadania ou no estatuto social.

É o que ocorre actualmente, com maior visibilidade, em áfrica:: as "diferenças" que se registam na base dos conflitos entre povos (nações, etnias ou tribos, como se queira) têm, antes de tudo, uma motivação etnocultural, mesmo quando parecem configurar apenas uma disputa pelo poder. E se é este que, no fundo, anima a conflitualidade, é o factor etnocultural que se invoca para justificar o objectivo não confessado.

Em 1958, num artigo publicado na Acção Missionária, depois incorporado no livro Etnografia de Angola, o internacionalmente conceituado etnógrafo, Padre Carlos Estermann, usava o termo "racismo" para caracterizar as incompatibilidades etnoculturais entre os povos negro-africanos. Referia-se especialmente ao "desprezo e ostracismo" a que eram submetidos pelos povos Bantus as minorias Cuissis e Bochímanes, existentes no Sul de Angola, entre os quais não se conheciam exemplos de "miscigenação", apesar de, quanto aos primeiros, as diferenças somáticas nem serem visíveis. O que já não acontecia em relação aos Bochímanes (que os Bantus consideravam "Não-gente"), os quais, como é sabido, são pequenos e franzinos, têm uma cor ocreosa e olhos rasgados como os mongóis; os homens apresentam uma barriga descaída, como um "avental" que quase lhes esconde o sexo, e as mulheres, nádegas protuberantes de esteatopigia; e por cima destas diferenças, falando por "cliques".

Mas Estermann alimentava esperanças que, se hoje fosse vivo, veria frustradas... Registava ele um acontecimento raro: em 1951, no Ruanda-Burundi, onde não eram regulares as relações interétnicas, três príncipes da alta nobreza Tutsi tinham aceitado apadrinhar o baptismo de três casais Hutu... E comentava, feliz e ufano por este feito dos missionários: "Parece-nos que os resultados conseguidos nesta região da áfrica central, pela influência do cristianismo, também se podem obter noutras partes do continente negro."

De tudo se pode tirar uma conclusão, hoje, em Portugal, onde só uma enorme iliteracia ou preconceito sustentarão, como nos séculos obscurantistas da Escravatura, que os Negros, os Pardos ou os Amarelos são, moral e intelectualmente, inferiores aos Brancos: a de que o "racismo", na acepção que se generalizou para marcar as "diferenças" raciais e culturais, é um epifenómeno circunstancial, gerado por uma situação económico-social concreta e confinada num tempo-espaço determinado, que se dilui ou apaga conforme o nível educativo do indivíduo ou do grupo em que se manifesta.

Em estado larvar, abate-se no seio da família civilizada e da escola culta e humanizada; em acção, contraria-se ou neutraliza-se sob a pressão implacável da Lei.

Leonel Cosme

  
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Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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