O mês de Setembro estava a chegar ao fim. João
Pedro começava a habituar-se a tomar o pequeno-almoço sozinho.
As aulas tinham começado há uma semana e aquele mundo era-lhe,
para já, completamente estranho. Os pais acharam que ele devia transferir-se
para o externato e ele fizera-lhes a vontade. Sabia o que estava em jogo. Queria
frequentar Psicologia na pública e, embora as suas notas de 10º e 11º
não o afastassem da média prevista, não queria correr riscos
desnecessários. Só isso é que explicava que tivesse aceite
transferir-se para o Externato.
Para trás tinham ficado os amigos e a namorada. Trocara-os
porque o dezasseis de Português se tinha tornado numa barreira inultrapassável,
apesar de estudar como um mouro, aturar duas vezes por semana as explicações
da tia e ter de ler coisas que não lembrava ao diabo escrevê-las.
O professor era um casmurro, embora lhe tivesse explicado porque é que
a obtenção de um dezassete era, naquelas circunstâncias,
uma espécie de missão quase impossível. Não compreendia
os argumentos do homem, embora achasse que ele sabia do que falava. O problema
é que por muita razão que o professor tivesse, isso de pouco lhe
servia. Necessitava de subir a nota e pelos vistos não podia. Sentia-se
defraudado. Em Matemática o problema era, de certo modo, idêntico.
A barreira neste caso situava-se um ponto acima, mas por mais que ele fizesse
não lhe conseguia chegar. Pior do que isso era, no entanto, saber que
os iria ter novamente como professores no 12º ano, do mesmo modo que desconhecia
quem lhe iria sair na rifa às restantes disciplinas. Colocara o problema
aos pais que eram de opinião que ele não estava em condições
de arriscar fazer o 12º ano naquela escola.
Aquele pequeno-almoço, mais uma vez, solitário
não deixava, contudo, de o abalar. Era aquele o momento do dia em que
costumava perguntar-se se mudar de escola tinha sido de facto a melhor opção
Embora estivesse quase todas noites, no café, com o pessoal de quem gostava,
sabia que quando o trabalho apertasse, o caso mudaria de figura. Aceitara a
mudança, mas estava a custar-lhe habituar-se a ela. Tinha deixado para
trás amigos que conhecia desde o Ciclo e até, em pelo menos dois
casos, desde a Pré-Primária. Com eles partilhara segredos, as
jogatanas de futebol no recreio e os primeiros copianços. Elas vieram
mais tarde, aguentaram-lhe as parvoíces e as bocas foleiras e acabaram
a emprestar-lhe os cadernos para pôr os sumários de História
em dia.
Tinham feito tanta coisa juntos que estar sem eles numa sala
de aulas, naquele café ou num polivalente era uma sensação
tão estranha quanto incómoda. Sentia-se como se estivesse no degredo
das férias em Pedras d?el Rei, a contar os dias para retornar ao Porto
e à companhia do pessoal nas praias de Leça. Até a calma
matinal daquele café o perturbava. Meses atrás, estaria a rir-se
como um perdido da última anedota que o Ernesto acabara de contar. Meses
atrás, sabia que se podia esquecer dos cadernos na cadeira da mesa ao
lado, porque a cabeça de alho - chocho da Mariana o faria voltar, de
imediato, à terra. Meses atrás, até podia não ter
dinheiro para pagar aquele pequeno-almoço que ninguém sairia a
correr atrás dele por causa disso. E como lhe fazia falta a má-língua
sobre os professores e os cromos do curso de Arte e Design. A equipa de volei
da escola nunca mais seria a mesma sem ele. Sobretudo depois dos jogos. E quem
o iria chatear quando o Benfica perdesse ?
Os novos colegas pareciam-lhe simpáticos. Ainda não
os conhecia bem, mas sabia que muitos deles eram, sobretudo, seus concorrentes.
Tinham ido para ali pelas mesmas razões que ele fora e isso deixava-o
apreensivo quanto ao que o esperava nesse ano lectivo. Com certeza que não
haveria grandes oportunidades para conviver. Era chegar à escola, aguentar
as aulas e abalar o mais depressa possível para casa. Pelo que até
agora lhe era dado ver, não lhe parecia que este fosse um ano em que
os professores propusessem muitos trabalhos de grupo. E depois bastava olhar,
nesse momento, à sua volta para ver que não havia ninguém
da sua turma naquele café. Os pais descarregavam-nos à porta do
Externato cinco minutos antes das aulas começar e ala que se faz tarde.
Que raio de sorte a minha. Chamou o empregado. Pagou e partiu
apressado. A esta hora os amigos estariam a entrar calmamente no portão
da escola, rindo alto e ouvindo as bocas antipáticas da Dona Rosa. Ali,
apenas o relógio de parede anunciava que tinha chegado em cima da hora
do começo das aulas. A campainha começava a confirmá-lo.
Dirigiu-se para a sala, sorriu para as primeiras caras conhecidas e entrou.
Achava que a escola era um pouco mais do que isto, mas só há bem
pouco tempo é que o descobrira. Por isso é que quando o professor
entrou lhe apeteceu suspirar de alívio. Pelo menos, nos próximos
cinquenta minutos sabia bem o que o esperava.
Ariana Cosme
Rui Trindade
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