A falta de memória histórica parece ser um dos males de nosso
tempo. Walter Benjamin, já na década de 40, anunciava o esquecimento
como uma das terríveis consequências da modernidade. A perda das
lembranças gera, sem dúvidas, o esquecimento da história,
o que faz de nós seres sem identidade. E o que é pior, ausentes
de uma identidade coletiva.
Essa perda parece bem conveniente em um tempo onde o individualismos
reina e os projetos populares e sociais parecem morrer na disputa com os interesses
do grande mercado. Se a crise que vivemos parece ser também a crise de
projetos alternativos, o que faz com que alguns como Fukuyama se apressem em
anuncair o fim da história, a crise também pode ser a esperança.
Esperança que gera uma aposta: na construção de outros
projetos que possam ser, de fato, alternativos. Afinal, como dizia Paulo Freire,
é preciso ter utopias. Utopias que nos movam em direção
à luta, e não à aceitação passiva dos acontecimentos.
Uma utopia que nos conduza a ação indignada.
Mas... afinal, o que hoje nos leva a indignação?
O que hoje nos move em direção a luta? O que restou de nossa veia
revolucionária de outros tempos? Parece que bem pouco. Zumbi dos
Palmares virou figura folclórica no Brasil e Almirante Negro é
lembrado apenas como enredo de uma conhecida escola de samba do Rio de Janeiro.
Nossos problemas pessoais tomam todo o escasso tempo presente. E também
futuro. Nossas questões individuais tornaram-se as únicas "legítimas
causas" que parecemos estar dispostos a defender.
Hoje nos persegue a falta de dinheiro, a insatisfação
com o trabalho, a insegurança cotidiana, o medo do desemprego, o medo
do que possa acontecer com a família em caso de nossa ausência,
o medo da morte, o medo da vida... o medo. Esquecemos, porém, que essas,
antes de serem questões individuais, são no fundo questões
de todos. São problemas de cada um de nossos vizinhos, de cada um dos
nossos companheiros de trabalho, da cada desconhecido que senta-se ao nosso
lado no ônibus pela manhã tão sonolento quanto nós.
Nossos problemas individuais são todos problemas humanos. Sendo humanos
são todos, sem exceção, problemas gerados em uma certa
sociedade, em um dado tempo, como conseqüência de um certo modo desta
mesma sociedade se organizar, produzir e concentrar riquezas. Estamos falando
do modo como se fabrica a riqueza mas também, e como conseqüência,
a pobreza. Estamos falando de um país chamado Brasil mas poderíamos
estar nos referindo a países como Bolívia, Argentina ou Uruguai
pois ao falarmos de nosso cotidiano como brasileiros estamos falando, de certo
modo, do cotidiano de todos os países latino-americanos.
Estamos falando também, para não acabar esquecendo
o motivo que nos fez escrever esse artigo, de seres que produzem riqueza mas
são impedidos dela usufruirem. Seres que não podem ter acesso
a produção saída de suas mãos, pois que a lógica
econômica é produzir para um outro, não para si e para os
seus. Falamos de quem é trabalhador quando deveria ser apenas menino
e menina, filho e filha, estudante somente. Falamos dos trabalhadores infantis,
milhares ainda no Brasil., e que se espalham por todos os cantos nestes país.
Gente esquecida pelo poder público brasileiro e pelos discursos oficiais,
gente lembrada apenas nas reportagens de jornais. Quando o são. Estamos
falando de gente.
Afinal que gente é essa? Dados do Mapa da Fome,
feito em 1993, apontavam que neta época cerca de 32 milhões de
brasileiros viviam na linha da pobreza - 1,7 milhão apenas no Rio. Os
dados atuais ainda assustam e não se distanciam dos números da
época. Quantos destes 32 milhões eram apenas meninos e meninas?
Quantos destes não mais existem entre nós hoje, vítimas
que foram da fome, da violência instituída ou de inumeráveis
doenças a que estão sujeitos os pobres de nosso país? "Essas
pessoas não têm renda suficiente nem sequer para a alimentação.
Estão perdendo até o direito de sonhar", denunciou Maurício
Andrade coordenador da Ação da Cidadania contra a Fome e a
Miséria, uma importante ONG brasileira, em recente entrevista a um
jornal carioca.
Buscando estabeler um quadro confiável dessa triste
situação, a CNTE - Confederação Nacional dos trabalhadores
da Educação - realizou a partir de uma parceria com o Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos
- DIEESE e a Organização Internacional do Trabalho ? OIT, uma
pesquisa nacional. A idéia era colher e analisar dados sobre a realidade
do trabalho infantil em grandes cidades e sensibilizar e mobilizar a família,
a escola, professores e a sociedade em geral para a solução do
problema. Os dados finais foram apresentado em janeiro de 1997, e ainda hoje
são pouco conhecido pela população brasileira, especialmente
por nós educadores. Não será ainda tempo para conhecermos?
A pesquisa analisou as condições de trabalho
e de educação de crianças de sete a quatorze anos, em seis
capitais brasileiras: Belém, Recife, Goiânia, Belo Horizonte, São
Paulo e Porto Alegre. Ao todo, 1.419 crianças foram entrevistadas, e
puderam confirmar que a situação da infância no Brasil vai
mal. Entre outras coisas os dados obtidos durante a pesquisa apontam que as
crianças trabalhadoras fazem o serviço de qualquer adulto, cumprindo
longas jornadas de trabalho. Uma grande parte destas crianças trabalham
cinco, seis ou sete dias na semana, muitas em tempo integral, sendo que, em
vários casos, uma parte da jornada se cumpre à noite. Outro dado
aterrador é o que se refere a pagamentos. Em torno de 60% destes pequenos
trabalhadores ganham menos de um salário mínimo. As entrevistas
mostraram que um terço das crianças começou a trabalhar
antes dos dez anos de idade.
E quanto a escolaridade? Os índices de repetência
das crianças trabalhadoras entrevistadas alcançavam entre 60%
a 70%. Cabe-nos perguntar como algumas crianças ainda conseguem estudar
e serem aprovadas em condições tão duras de vida
A pesquisa continua a nos mostrar a face perversa da realidade
brasileira. Quando perguntados se gostavam de trabalhar, quase todas as crianças
disseram gostar. Um dos motivos mais citados foi a necessidade de ajudar os
pais em casa. Também disseram que era importante o aprendizado que o
trabalho representava e que trabalhar era uma alternativa à rua. Por
tudo isso, dizem os meninos e meninas entrevistados, não gostariam de
parar de trabalhar. A maior parte dos que responderam a pesquisa achavam que
criança deveria trabalhar antes dos quatorze anos. Poucos foram os meninos
e meninas que condenaram o trabalho antes dessa idade.
Numa análise superficial poderíamos até
afirmar: "Ora, se os próprios meninos e meninas dizem que não
querem outra vida além da do trabalho... porque nos importarmos com o
fato de trabalharem? Se dizem que precisam... se afirmam que gostam..."
O problema é que não vemos meninos e meninas
de classe média trabalhando em condições e com salários
como esses. O problema é que o trabalho infantil no Brasil é causado
pela excessiva concentração de renda, pela falta de uma política
educacional integral, pela precarização das relações
de trabalho e pelo papel que a sociedade atribui ao trabalho. O problema é
que o trabalho de crianças pobres acaba sendo uma estratégia de
sobrevivência à fome, à miséria, à marginalidade.
A sociedade brasileira naturaliza o trabalho infantil e o vê como tolerável
e muitas vezes como desejável. O trabalho de crianças pobres reproduz
e aprofunda a desigualdade social na medida que prejudica o desenvolvimento
físico, psicológico, intelectual e social na infância. Criança
que trabalha não estuda bem, não brinca o suficiente, não
se prepara para a vida. Trabalho infantil não é solução,
trabalho infantil é problema para a criança e para a sociedade.
Recentemente a OIT divulgou, em Genebra, dados estarrecedores
sobre o trabalho infantil em todo o mundo. São 250 milhões de
crianças, entre cinco e quatorze anos, que trabalham. Desses, 120 milhões
em período integral. O Brasil ocupa um triste lugar entre os países
com os maiores índices de trabalho infantil. Os cálculos apontam
que está em torno de 16% o número de crianças brasileiras
trabalhadoras. Um dos méritos do trabalho realizado pela CNTE, OIT e
DIEESE é o de nos lembrar, para não cair no esquecimento que quer
apoderar-se de nós nesses tempos de modernidade, que historicamente os
educadores brasileiros tem apontado, como bandeira de luta, o lema: toda criança
na escola. Quem ainda se lembra?
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