Não se trata de uma estreia literária, mas depois de ter sido galardoado com o "Prémio Ler/Círculo de Leitores" em 1998, Manuel Córrego revela-se como um escritor que importa ter em conta porque este Campo de Feno com Papoilas se afirma como um romance muito interessante da moderna ficção da última década do século que agora chega ao fim. Na verdade, o propósito narrativo do romance evidencia-se na certeza literária de que a escrita pode e deve ser o motor do enredo e de tudo o que de mais essencial deseja narrar. Ora, o que perpassa na estrutura romanesca deste livro de Manuel Córrego é na melhor tradição ficcional portuguesa o desejo de querer fixar os contornos de uma vivência social e humana feita por entre inúmeros registos, em planos que se sobrepõem ou se entrecruzam, mas de que o narrador não perde o sentido ou a direcção dos próprios cordelinhos ficcionais. A história que se narra em Campo de Feno com Papoilas é muito simples e não tem artifícios: fala-se de uma banda musical que é o que de melhor havia em Vila Nova da Azinheira (antes de ser a cidade de São João da Madeira, pensamos nós, sem que na estrutura do romance se faça a isso uma clara referência) que cresce e se valoriza no plano musical na mesma medida em que a vila se desenvolve, se industrializa, se torna realmente uma cidade de futuro. E as suas gentes, como os próprios elementos da banda musical ou os directos intervenientes na evolução da vila, crescem na proporção dessa evolução humana, social e cultural, sem que se pressinta qualquer observação irónica ou de menosprezo nos nomes das próprias personagens ou nas histórias que percorrem todo o romance. Assim, o que importa pôr em relevo é, antes de mais, o domínio da escrita, factor essencial num escritor de ficção que começa a traçar o seu caminho criativo, mesmo que por vezes abuse da frase feita, do lugar comum ou do provérbio para imprimir um certo fio condutor a toda a história, que por vezes nos lembra, na forma realista como retrata esse ambiente social e humano, o que um outro escritor seu conterrâneo (e hoje de todo esquecido) que foi João da Silva Correia (1896-1973) revelou em romances como Porta Aberta (1949), Unhas Negras (1953) ou Um Minuto de Silêncio (1962), embora de forma menos conseguida pela sua escrita atropelada e claramente regionalista ou mesmo pela forma tão directa como sempre desejou fazer um roteiro pessoal, geográfico e sentimental na expressividade próxima do povo a que João da Silva Correia se orgulhou pertencer e a quem Manuel Córrego evoca de passagem em nota na página 135 do seu romance. Mas esse sentido "regionalista" que por vezes se detecta em Campo de Feno com Papoilas obedece a um outro modo bem próprio de dar ou até denunciar as injustiças humanas e sociais no meio de gentes em que os conflitos e desavenças nitidamente se detectam, quer entre os elementos da banda musical como nas formas de negócio montado ou explorado numa cidade que cresce, seja através de um café, cinema ou fábrica de chapéus, e deste modo estabelece assim o "corpus" narrativo de uma realidade que não se afasta daquilo que Manuel Córrego melhor quis retratar, numa expressão que tem muito de pícaro e de realista nos contornos psicológicos das figuras que surgem ao longo do romance, chamem-se elas, com uma evidente ironia literária, João das Contas, Benedito Pouca Letra, Jesuíno Santa Engrácia, Coimbra Ladrão ou Anacleto Pitada. É evidente que o sentido irónico das diferentes histórias que se fundem numa única história de Campo de Feno com Papoilas (que deveria ser, como diz o autor, "uma espécie de ópera com aberturas e interlúdios") se define objectivamente pela intenção de se servir de uma certa truculência narrativa (a partir dos nomes das próprias personagens) e dar o retrato de situações e tipos humanos que, determinados por um quotidiano marcado de desencanto ou aventura, oferecem uma imagem real dos lugares e pessoas que aparecem no romance. Digamos, pois, que Manuel Córrego soube depurar de forma poetizada os contornos psicológicos ou descrever factos e situações que se adivinham no decorrer da leitura deste romance em que a escrita, repetimos, se impõe como afirmação de um escritor cujo nome deve ser acompanhado em futuros livros, já que o "Prémio Círculo de Leitores" deve servir como estímulo e alavanca à consolidação de uma obra que, mais do que no plano teatral, que se adivinha de qualidade no domínio romanesco. E se os nomes curiosos ou propositadamente escolhidos por Manuel Córrego na atitude de marcar uma certa ironia que afinal é clara nos fios da própria narrativa, um pouco na linhagem literária prolixamente expressiva, por exemplo, de um Fialho de Almeida, o que se deve salientar é o sentido literário que percorre a estrutura romanesca de Campo de Feno com Papoilas e, pelo seu sentido denunciador de uma ficção literária tão singular, não devemos esperar muito tempo para entender que este romance de Manuel Córrego não é de forma nenhuma um fogo-fátuo na sua aventura criadora. Serafim Ferreira MANUEL CÓRREGO CAMPO DE FENO COM PAPOILAS Ed. Campo das Letras / Porto, 2000.
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