Na altura da publicação das Crónicas Algarvias, dissemos então que estavam ainda por recuperar em livro as crónicas e contos de Manuel da Fonseca espalhados pelos jornais e revistas, sobretudo no Diário Popular e República, como agora acontece com a recente edição de À Lareira nos Fundos da Casa Onde o Retorta tem o Café, onde se reunem os contos publicados no extinto "Diário Popular" entre 1969 e 1971. E uma vez mais os leitores retomam o contacto com um dos contistas ou cronistas portugueses deste tempo que, com a sua verve maliciosa e irónica, sabe e sempre soube falar das gentes do seu Alentejo ou de outras que consigo se cruzaram nos muitos anos de ter vivido em Lisboa e noutras paragens. Mas o que nestas histórias se recupera, falando em termos só literários, é ainda esse sentido vernacular de numa escrita de forte oralidade o autor de O Fogo e as Cinzas captar a dimensão mais humanizada da vida, mesmo que por vezes seja implacável na sua ironia ou modo de denunciar tudo o que à sua volta nunca passou sem um registo pessoal e crítico. De facto, pelo propósito de uma certa vagabundagem que sempre se quadrou bem com o seu lirismo anarquizante e revoltado, Manuel da Fonseca reelabora o seu discurso narrativo através de uma escrita depurada e de vivo encantamento, que prende os leitores, seja para falar das agruras das gentes alentejanas ou descrever um Algarve de outros tempos ou ainda para captar as histórias que saem do fundo da vida e do mundo e ressuscitam diante dos nossos olhos as sombras, lugares e pessoas desse inalterável Alentejo que perpassa uma vez mais pelas páginas deste novo livro e volta a trazer a obra e a presença do autor de Seara do Vento ao convívio dos seus leitores. No modo simples de denunciar certas situações ou desatar à lareira, na acalmia das noites alentejanas, em histórias que se prendem umas nas outras pelos fios da memória de álvaro Montes (que surge quase como o "alter-ego" do próprio narrador), de Mariano Coudel ou do compadre António Prezado, o que se redescobre nos limites impostos a si mesmo por Manuel da Fonseca, é essa verdade de uma visão original e pessoalíssima do mundo e das pessoas em seu redor, num misto de ironia, subtileza e denúncia das "histórias" que sabe contar de um modo admirável. E assim o autor de O Fogo e as Cinzas reincide numa coerência ficcional que é a imagem real e aproximada de uma paisagem e permanece quase inalterával no bem e no mal dos seus valores humanos. Mas o claro sentido poético das histórias contadas e recuperadas neste novo livro que traz Manuel da Fonseca ao nosso convívio, ou as gentes e paisagens de Sines, Santo André, Lisboa e uma vez mais ainda a memória presente de Santiago que se vislumbra na clara ingenuidade de tudo dizer e lembrar, porque a vida se tece entre uma bica-bagaço no silêncio tranquilo do Café do Retorta - tudo isso faz com que este livro se leia e entenda como a atitude de um escritor que,a sorrir ou no modo próprio de uma sabida malícia que transportou consigo em oitenta anos de vida, deixe que desfile ao sabor da conversa as imagens pacatas da vila, os vícios ou defeitos dos senhores e dos camponeses e assim possa apontar o que estava errado a seus olhos. Ou como declara Urbano Tavares Rodrigues no prefácio a esta edição, dar-se conta de que este novo-velho livro de Manuel da Fonseca "é como uma colcha bordada pacientemente com figurinhas provincianas vindas da memória do Alentejo profundo, dos clubes e das sociedades recreativas, dos largos pasmados, dos vastos campos onde os chaparros sinalizam a beleza de cada hora, desde o arrebol à calma do crepúsculo". De facto, nestes contos breves ou registos da memória, toda a viagem se completa na força incontida de uma escrita terna, nada redundante ou excessiva nos pormenores: as figuras surgem em dois traços, a paisagem é demarcada em pinceladas suaves, o fio condutor da história é sempre o Café do Retorta como em O Fogo e as Cinzas o largo foi e é o centro do mundo. E assim se ergue essa galeria humanizada e poetizada de gente simples que sabe falar dos que partiram ou ainda vivem nos altos e baixos de uma vida pasmada e calma e o Autor de novo nos cativa por esse fascínio que é a arte de saber contar uma história sem nenhum enfado nem tempos mortos na mais bela e intensa forma de narrar. Com este novo livro (e ainda os que se prometem para que de todo se recuperem as crónicas e contos perdidos e esquecidos em jornais e revistas), Manuel da Fonseca (1911-1993) está entre nós pelo entusiasmo e beleza da própria escrita ou ainda, como observou Mário Dionísio, porque nela coabita "uma força de prodígio, um apelo irresistível que vai de homem a homem, que muda, mudará os homens e as coisas, o apelo que ilumina e aquece toda a sua obra, todo o seu encantamento e toda a sua vidência, toda a sua rudeza e toda a sua ternura". Serafim Ferreira critico literário Manuel da Fonseca À LAREIRA, NOS FUNDOS DA CASA ONDE O RETORTA TEM O CAFÉ Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues Ed. Caminho / Lisboa, 2000.
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