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Em memória de MÁRIO SACRAMENTO

Mais de trinta anos sobre a morte de Mário Sacramento (Março de 1969), cuja obra de crítico e ensaísta, se acaso não mergulhou em total esquecimento, tem merecido pouca atenção, parece-me oportuno relembrar como o autor de Ensaios de Domingo foi um dos valores intelectuais de profunda coerência ideológica nos tempos do fascismo e como sempre soube assumir posições de clara frontalidade e independência no plano das ideias e da literatura. Não se eximiu a polémicas, não se furtou a emitir juízos e opiniões críticas abertas e lúcidas, mesmo quando "incomodava" certos escritores que consigo ideologicamente se identificavam.

Não pretendo abordar agora alguns dos aspectos que nos seus ensaios sempre me interessaram, mas, na memória sentida pela sua morte antes de chegar aos cinquenta anos, na distância temporal que não fez esquecer breves encontros e contactos devido a razões editoriais e literárias, desejo tão-só reavivar a lembrança que ainda guardo do autor de Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda. Mas sabê-lo vivo e perto de nós é ainda ter a certeza de que o seu exemplo de admirável ensaísta (na linha de outros críticos como Casais Monteiro, Jorge de Sena, Ramos de Almeida, Mário Dionísio, Óscar Lopes, João Gaspar Simões, Eduardo Lourenço ou Alexandre Pinheiro Torres) exerceu uma notória influência cultural na geração que nos anos 60 acreditou também poder emendar o sentido da História.

Na altura da 1ª. edição de Anquilose (1968), na crítica então publicada na habitual coluna que tinha no "Diário de Lisboa", Mário Sacramento não deixou passar em claro alguns "deslizes" literários a José Marmelo e Silva. O autor de Sedução não gostou nada dessa crítica e decidiu responder, em simples bilhete postal no "Litoral" de Aveiro, mas o crítico não quis embarcar em desafio de outra polémica literária. Respondeu um pouco a despachar, justificou como entendeu a sua posição - e pouco mais. Algum tempo depois, fiz com José Marmelo e Silva uma entrevista para o "Jornal de Notícias", em que se abordavam as variadas críticas feitas à sua novela por parte de José Saramago, Júlio Conrado, Gaspar Simões, Manuel Poppe e, claro, Mário Sacramento. O autor de Adolescente Agrilhoado aproveitou essa ocasião para insistir nas razões que lhe assistiam e, a propósito das posições defendidas por Mário Sacramento, lançou algumas "beliscadelas" críticas acerca do que entendia ser a arte literária e a atitude crítica quanto aos livros criticados.

É certo que Mário Sacramento não podia ficar indiferente, mas teve uma atitude que pessoalmente me desagradou: em nota breve de resposta, dizia que "pela mão do seu editor" Marmelo e Silva aproveitara a ocasião para reacender uma polémica que nada lhe agradava. Por mim, logo me decidi a escrever-lhe, dizendo da minha surpresa por vê-lo confundir, com alguma intenção, a minha posição de então o responsável literário da "Ulisseia" e a de colaborador regular do suplemento do "Jornal de Notícias". Claro, sabia não haver da sua parte qualquer mal-entendido contra mim, por sempre terem sido cordiais os nossos contactos (e na sua memória estava ainda o convite que eu lhe fizera para prefaciar a reedição de Praça da Canção, de Manuel Alegre, publicada na colecção "Poesia e Ensaio") e, pouco tempo depois, recebia de Aveiro esta sua carta que transcrevo como forma de homenagem a um crítico e ensaísta que sempre respeitei e cuja lembrança mantenho viva:

"Aveiro, 30/9/68

Meu Caro Serafim Ferreira

Como não tenho nada contra si, devo-lhe duas palavras de resposta à sua carta, que só agora li, de regresso de férias. Serão breves e simples, pois tenho mais que fazer e o marmelismo é um fait divers que só interessa ao próprio:

a) não creio que o meu caro Camarada se considere tão alienado que admita haver uma separação radical entre a sua qualidade de cronista literário e a de funcionário de uma empresa editorial; seria pois curial e deontologicamente correcto que se abstivesse de intervir quando os editados pela sua casa estivessem em causa: a minha expressão "pela mão do seu editor" apenas pretendeu chamar-lhe a atenção para isso;

b) escrever um prefácio (em que não há, aliás, juízos de valor) não é paralelo que tenha qualquer cabimento no caso, uma vez que a separação a fazer-se é entre a parte comercial e a parte intelectual de cada caso, como é elementar;

c) quanto ao nosso Marmelo, tudo o que haveria a dizer-lhe (se tal valesse a pena, o que se demonstrou não valer) seria que foi ele quem citou o Fischer... que agora repudia através do que julgou alegar contra mim.

d) tudo isso foi (e é) ridículo, como sabe.

Cordialmente seu,
Mário Sacramento".

Na saudade destes muitos anos sobre a sua morte, é este um jeito pessoal de homenagear a figura intelectual do autor de Ensaios de Domingo: e de longe me ficaram as palavras e conselhos que, nos nossos breves encontros das tardes de domingo no "Trianon" aveirense, me habituei a ouvir com outros amigos comuns que ele sentava cordialmente à sua mesa, sempre no entusiasmo de exercer influência ou actuar no plano cultural em redor dos problemas que então enformaram e deram força ao mesmo combate. E, na releitura que faço do seu Diário póstumo, em páginas de elevada coerência ideológica e sentido de responsabilidade no plano da intervenção política nesses anos cinzentos do salazarismo, sei como por aí nos remete à história das ideias de tempos tão penumbrosos e confirma que, no seu combate e posicionamento cultural, a "verdade" e "sinceridade" não foram conceitos vazios de sentido.

A importância e o significado desse testemunho merece que, nos mais variados sentidos, os seus desabafos e protestos sejam entendidos como uma contribuição válida e positiva na compreensão da literatura dos anos 50 e 60. A presença de Mário Sacramento, para quem dela conhece os seus sinais mais visíveis, não falece nem se ignora na distância da já longínqua partida: os livros existem, têm sido reeditados talvez com pouca frequência, apenas exigem que outros olhos os releiam e através deles se erga essa necessária ponte de entendimento cultural e literário que se impõe. Não é tarde para que essa releitura se faça na inegável importância da sua obra de ensaísta, porque em boa verdade merece ainda toda a nossa atenção.

Assim, nesta hora de Março em que evoco Mário Sacramento, na saudade guardada por ter sido injusto e prematuro o seu desaparecimento, sei como sempre falam comigo alguns dos seus "ensaios de domingo" e, além do mais, como nas páginas sentidas e sofridas do seu Diário reencontro a razão para relembrar o seu exemplo intelectual. E comigo ficam estas palavras lúcidas de um premonitório aviso, em dia de Dezembro triste, poucos meses antes de partir:

"Esta sensação horrível de que vivi para nada, vai-me delapidando! Intento fazer cada vez mais - e faço cada vez menos... Podia ter-me fixado numa temática de investigação e ensaio, mas deixei-me conduzir (pela distância a que vivo de bibliotecas e confrades) para o empenhamento no quotidiano social e meditação avulsa. Com o advento de outras gerações, tudo o que fiz e faço vai perdendo a cor, parece errado e inverosímil até."

Mas não é de todo verdadeiro este protesto e sabemos, como observou Óscar Lopes, que "esquecê-lo não seria apenas uma injustiça, seria uma mutilação, porque lhe devemos muitas das páginas de maior finura ensaística, em matéria de interpretação literária, de reflexão teórica e de análise ou directriz política".

Serafim Ferreira
Crítico literário


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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