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Das Condições e Contextos do Atendimento à Infância às Orientações Curriculares

(testemunho de uma vivência profissional num CEPI*)

Um Centro de Educação e Protecção para a Infância (CEPI) é uma instituição sob tutela dos Serviços Sociais do Ministério da Educação que recebe, exclusivamente, filhos de funcionários do Ministério e conjuga, no atendimento à infância, as vertentes pedagógica e social, o que lhe confere características muito específicas.
A instituição, com duas valências de atendimento (creche dos 3 meses aos 2 anos de idade e jardim de infância dos 3 anos aos 5/6 anos), tem recebido uma média anual de 110 crianças, na sua maioria filhas de professores, distribuídas pelos diferentes níveis etários e admitidas num escalonamento baseado nos rendimentos familiares.
Possui um quadro próprio de educadores, auxiliares de educação e ajudantes de creche, a que se juntam educadores de infância da rede pública, destacados anualmente, e oferece um atendimento adequado às necessidades das famílias, com um horário de funcionamento alargado, das 8 às 19 horas que contempla o almoço.
No caso do CEPI Aurélia de Sousa (Porto), a que se reporta a minha vivência profissional, a instituição ocupa um edifício construído de raiz para o fim a que se destina e que contempla diferentes espaços imprescindíveis para uma instituição vocacionada para o atendimento à infância - salas de actividades, refeitório, cozinha, copa, lavandaria, salão polivalente e espaços exteriores.
A organização, gestão e coordenação dos recursos humanos do CEPI é desempenhada por uma educadora (que acumula também todas as tarefas de carácter administrativo inerentes à sua manutenção e funcionamento) apoiada por duas outras educadoras (substituta e adjunta da responsável) estas não a manter o trabalho directo com as crianças.

Os recursos humanos

Ao longo dos anos, com uma estabilidade do corpo docente que permitiu criar um espírito de grupo, foi possível construir uma autonomia pedagógica geradora de dinâmicas de trabalho que valorizam o atendimento individualizado. Esta solução para as necessidades sócio-afectivas das crianças implicou a constituição de equipas formadas em média por três educadores, na valência de jardim de infância, para cada grupo etário, e quatro elementos por equipa, na valência de creche.
Paralelamente investiu-se numa filosofia que valoriza a qualidade dos tempos que as crianças vivem na instituição, pelo que se adoptou a alternância de horários entre os educadores dos diferentes grupos, por forma a permitir que as crianças estivessem sempre acompanhadas por eles, nos diferentes momentos do dia. Cada grupo de crianças vive, em permanência, com, pelo menos, dois educadores, o que facilita a concretização da tese, expressa nas Orientações Curriculares e por nós perfilhada, segundo a qual "a relação individualizada que o educador estabelece com cada criança é facilitadora da sua inserção no grupo e das relações com as outras crianças".
Com esta atitude pretende-se também que neste contexto de atendimento alargado, onde se procuram articular respostas para as necessidades das famílias e das crianças, se criem condições para a intervenção educativa intencional com vista à criação de "um ambiente relacional securizante, em que a criança é valorizada e escutada", citando o mesmo documento, contribuindo desta forma para o seu bem-estar e auto-estima, fundamentais para o seu desenvolvimento harmonioso.
Na procura de caminhos que permitissem responder de uma forma coerente e contextualizada às exigências dos processos de aprendizagem das crianças, fomos construindo, ao longo dos anos, um "Projecto Educativo de Centro" onde se definem os princípios e os valores subjacentes às práticas e à formação das crianças, na procura de uma organização intencional e sistemática do trabalho pedagógico.
Ainda neste contexto, registe-se a elaboração anual de Projectos Pedagógicos para as diferentes salas, bem como de Relatórios e Plano de Actividades do Centro, instrumentos de trabalho abertos e flexíveis cujo objectivo é dar resposta às necessidades, interesses e características dos diferentes grupos de crianças, procurando estruturar o trabalho curricular e dandosignificado às intervenções educativas dos educadores.
Tudo isto avaliado em reuniões semanais de sala, por equipa (onde se analisam os processos de ensino/aprendizagem, se reflecte sobre as necessidades/comportamentos das crianças e se aferem comportamentos e atitudes), e em reuniões gerais mensais, em qualquer dos casos sempre em horário não lectivo.
Estes espaços de discussão e interacção nem sempre são pacíficos e exigem um esforço de comunicação grande. Constituem momentos de aprendizagem colectiva, no que respeita à vivência em grupo, à partilha e troca de saberes, no seio de um núcleo profissional. Claro está que tudo passa por um processo contínuo de crescimento e amadurecimento, no que respeita ao empenhamento e disponibilidade pessoal, que é exigido a todos. O profissionalismo que devemos a cada um de nós próprios, enquanto co-responsáveis por todo um ambiente educativo - que queremos vivo, participado e dinâmico - leva-nos a procurar posturas abertas que respeitem e integrem as diferentes formações de base.

Organização do tempo/espaço

Falar destes aspectos é tentar dar uma noção de como estruturamos os tempos/espaços educativos, tentando articulá-los com as questões lúdicas. Este último ponto é importante, na medida em que se procura criar condições para salvaguardar os momentos de lazer indispensáveis ao bem-estar das crianças. Assim, a rotina estabelecida para os diferentes grupos de crianças, passa por períodos de tempos organizados e estruturados, para o desenvolvimento de projectos/actividades, tanto em grandes como em pequenos grupos, tempos para brincadeiras e exploração espontânea dos materiais e dos espaços, tempo para satisfação de necessidades específicas como alimentação e sono, tempo para o recreio e novamente tempo para actividades mais intencionais (continuação e planeamento de projectos), a par da utilização livre e espontânea dos materiais lúdicos.
Devo salientar que faz parte da perspectiva pedagógica do Centro, não impor horários rigidos aos pais, sobretudo na creche, porque se acredita que nesta fase do desenvolvimento o papel das famílias é fundamental para as crianças. Se podemos contribuir para um menor stress dos ambientes familiares, porque não fazê-lo, desde que a adaptação e o bem-estar das crianças não seja afectado?!
No jardim de infância os pais são aconselhados a chegar até às 10 horas, porque é importante para as crianças adqurir uma rotina que lhes permita a integração plena nos grupos e na vida da sala, bem como a participação activa no desenvolvimento dos projectos e actividades. Com as crianças mais velhas (sala dos 5 anos), a rotina diária é ligeiramente diferente, na medida em que o tempo da sesta é facultativo, isto é, acontece de acordo com as necessidades individuais das crianças.
A introdução de tempos, espaços e materiais para enriquecer as práticas e criar novas oportunidades e experiências lúdicas, tem sido uma preocupação. Por isso, criaram-se novos projectos globais de intervenção educativa (computadores e biblioteca), dinamizados pelos educadores, numa perspectiva integradora e complementar das vivências e projectos das salas.

Comunidade educativa

O papel da família é primordial num contexto de atendimento como este, onde, como já se disse, há que articular as funções educativas com as de apoio à estrutura familiar. Por isso adoptamos uma atitude de grande abertura aos pais, que se concretiza na possibilidade diária que lhes é dada de entrar livremente nos diferentes espaços da instituição, em qualquer hora do dia. Com efeito, investe-se na aproximação escola/família, criando condições para a sua participação activa no processo educativo dos filhos. Esta aproximação é construída diariamente nos contactos informais e promovida durante o desenrolar dos diferentes projectos e vivências, que ano a ano vamos desenvolvendo. É frequente, contemplar momentos de participação activa e directa dos familiares das crianças nas actividades, quer das salas, quer do Centro. Neste processo, às vezes acontece que os pais são chamados a participar com os seus saberes profissionais especÌficos. Esta implicação vai igualmente de encontro à mensagem contida nas Orientações Curriculares, de que "a família e a instituição de educação pré-escolar são dois contextos sociais que contribuem para a educação da mesma criança" e, como tal, todos têm a ganhar se se estabelecer uma relação recíproca de confiança e entendimento.
As reuniıes e a passagem de mensagens relativas aos projectos em curso, através de instrumentos internos de comunicação com os pais (jornais de parede e jornal do CEPI), são outros espaços encontrados para promover a comunicação entre todos. Na busca de estratégias para a interacção com as famílias, também se valorizam as produções espontâneas (desenhos, colagens, pinturas e composições) e os registos de diferentes situações e acontecimentos, expondo-os em locais visíveis, dando simultaneamente espaço para a participação directa e activa das crianças na decoração dos espaços. Deste modo, é possível criar um clima de comunicação e interacção, de onde sai valorizada e respeitada a criança, que se revê a si e às suas vivências colectivas nos diferentes materiais expostos. Do ponto de vista das crianças, vão-se criando referências e memórias importantes para que se apropriem dos espaços e estabeleçam relações com os outros (adultos e crianças).

Práticas e conteúdos

A este nível foi muito importante a discussão em torno das Orientações Curriculares, na medida em que, como equipa, pudemos reflectir sobre os nossas práticas. Foi fundamental a tomada de consciência do valor da intencionalidade do acto educativo para podermos encontrar com mais segurança os fios condutores da acção pedagógica.
A prática de uma pedagogia que assenta no desenvolvimento de atitudes de respeito pelos outros e pelo mundo que nos rodeia, onde a par de uma organização cooperativa dos grupos, como via para a participação activa na vivência democrática, se promove também o desenvolvimento do comportamento autónomo, da responsabilização e da expressão, tem permitido criar um ambiente educativo, onde a criatividade e a interdisciplinaridade se conjugam, para favorecer o desenvolvimento de competências fundamentais para uma aprendizagem de vivência e convivência com os outros.
Daí que os eixos de referência das nossas práticas passem transversalmente pela educação para a paz, solidariedade, a multiculturalidade e a defesa do meio ambiente, perseguindo deste modo a formação de valores numa Educação para a cidadania.

Nota final

Procurei dar uma perspectiva das condições em que tenho exercido a minha actividade, na convicção de que outros contextos e caminhos se poderão ir construindo. Acredito que a procura de respostas e projectos de qualidade para a educação pré-escolar passa pela conjugação e cruzamento de formas adequadas aos mais diversos contextos sociais em que elas se desenvolvem.
Não é desejavel, contudo, que as perspectivas economicistas se sobreponham às reais necessidades das famílias e das crianças, nomeadamente no que se refere à criação real da igualdade de oportunidades no acesso à escola e à qualidade a que todos têm direito.
Cabe certamente ao Estado a assumpção das suas responsabilidades na procura de soluções, não escamoteando o sentido educativo das instituições, a par de uma política não economicista dos recursos humanos, aspectos indispensáveis, porquanto fundamentais, para a criação de oportunidades de qualidade e sucesso para todos.

Fátima Pena
educadora de infância

*Centro de Educação e Protecção para a Infância


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Fátima Pena
Educadora de Infância, Centro de Educação e Protecção para a Infância
Fátima Pena
Educadora de Infância, Centro de Educação e Protecção para a Infância

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