Aos olhos da Europa, sempre a África Negra teve as imagens que dela fizeram os colonizadores; e os seus povos eram tanto mais "humanos" quanto os seus costumes se aproximavam ou repetiam os costumes europeus. Bárbaros, primitivos, infantis - os Negros foram, para o colonizador, aquilo que este queria ou julgava que fosse: ora um "mau selvagem", precisado de comida e chicote para ser domado como a fera do circo, ora um "bom selvagem", carecido apenas de compreensão e ensinamentos para ser igual (ou parecido) aos seus tutores. E assim, durante séculos, no primeiro patamar, ele foi escravo; no segundo, assimilado. Até que, na década de 50 deste século, em duas Conferências, primeiro em Bamako, depois em Bandung, África fez ouvir "a voz igual " que Agostinho Neto já celebrava num poema de 1954, prenunciando a reassunção do Negro "na força irresistível do natural e da vida". A independência das colónias francesas e inglesas de África, que já despontava no horizonte na década de 50, viria a tornar-se, na década seguinte, numa realidade galopante, pela "força irresistível do natural e da vida", que tinha nos principais líderes africanos, formados na França e na Inglaterra, os grandes agentes da "reafricanização", pela retomada do fio da história interrompida e não raro fraccionada pelo colonizador desde que, na Conferência de Berlim, em 1885, com régua e esquadro, demarcou fronteiras e cindiu povos de acordo com as balizas mercantis da ocupação colonial. Não ignorando que os interesses das principais potências coloniais (Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica e Portugal), ainda que sob novas formas, continuariam a basear-se nas " divisões para reinar" (De Gaulle chegou a dizer aos franceses que a França ganhava mais com os países africanos independentes do que quando eram colónias), a primeira preocupação dos líderes dos novos países foi assegurar a unidade política dos seus povos, já que refazer as integridades etnoculturais (com os seus suportes clânicos, linguísticos e territoriais) desencadearia um processo de desestabilização económica e social que tornaria os países ingovernáveis. Nkrumah, Touré, Nierere, Kenyatta, Senghor ou Neto, todos sabiam que as diferenças etnoculturais seriam quistos na consolidação da unidade do continente africano, se fossem levadas às últimas consequências, isto é, ressuscitando os mesmos particularismos étnicos (em muitos casos coabitantes e transfronteiriços) que, na "velha África tribal", haviam favorecido a penetração, e depois a instalação, dos colonizadores. Se Agostinho Neto e o MPLA, no seu Programa Maior, ainda reconheciam, quanto a Angola, que "cada etnia terá o direito de utilizar a sua língua, de criar uma escrita própria e conservar ou renovar o seu património cultural" (atitude idealista que, na prática, como se veria mais tarde, era uma porta para o tribalismo), logo na primeira versão da Lei Constitucional, de 10 de Novembro de 1975, já só fora consignado que "será promovida e intensificada a solidariedade económica, social e cultural entre todas as regiões da República Popular de Angola, no sentido do desenvolvimento comum de toda a Nação Angolana e da liquidação das sequelas do regionalismo e do tribalismo." E quanto à unidade dos povos africanos, também a Constituição angolana reafirmava o que já era um princípio estabelecido no programa do Movimento, consignando que "a República Popular de Angola respeita e aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta da Organização da Unidade Africana"(esta criada em 1963), não tendo ido tão longe quanto os outros "países-irmãos" (Gana, Guiné ou Mali), anos antes, ao inscreverem na sua lei constitucional que "apoiavam sem reserva toda e qualquer política tendente à criação dos Estados Unidos da África, dispondo-se a renunciar à própria soberania." Era no tempo dos grandes líderes marxistas que aspiravam à implantação de modelos socializantes na organização dos Estados africanos (comunistas, como Nkrumah e Touré, e socialistas, como Senghor e Nierere), com recorrências do Pan-africanismo projectado da América, no início do século, por negros ou mestiços como Blyden, Du Bois e Marcus Garvey, que idealizavam um retorno do Negro-de-todo-o-mundo à África-Mãe (Garvey chegou a constituir uma empresa marítima para transportar negros americanos para a Libéria) e a criação de um Império Africano. Mas se uma divisa como "Negros de todo o mundo, uni-vos!", em evocação da União Soviética como país feito de diversas nações, valia como uma proposta de unidade africana, cedo ocorreram as manifestações nacionalistas e a emergência dos vínculos económicos às potências coloniais para obstarem a que tal unidade fosse além de uma solidariedade institucional. A tentativa de uma confederação do Senegal e da então República Sudanesa (Confederação do Mali), criada em Abril de 1959, findaria logo no Outono do ano seguinte, por divergências políticas e pessoais entre os respectivos dirigentes. Como se gorara a tentativa de união Egipto-Síria, no tempo de Nasser, e se esboroaram os "blocos" de Casablanca, Brazaville e Monróvia, pensados para constituirem "frentes" contra as investidas do neo-colonialismo... mas que se opunham entre si. Nkrumah cedo tinha admitido dificuldades na harmonização das diferenças regionais: "Alguns de nós são muçulmanos, outros cristãos; muitos adoram deuses tradicionais, que variam de tribo para tribo. Uns falam francês, outros inglês, outros português, além dos milhões que apenas conhecem uma língua africana das centenas que existem.Diferenciámo-nos culturalmente, o que afecta a nossa maneira de ver as coisas e condiciona o nosso desenvolvimento político." Mas perseverava na construção da unidade africana, numa África de pátrias solidárias ( De Gaulle defenderia uma "Europa das pátrias" em vez de uns "Estados Unidos da Europa"), como uma necessidade vital do Continente contra o imperialismo dos países mais desenvolvidos e poderosos. Qualquer que viesse a ser a forma dessa "unidade", a percepção da sua importância, como barreira contra os neo-colonialismos que se perspectivavam através das antigas potências coloniais e como afirmação da "personalidade africana" rediviva, era geralmente reconhecida, com entusiasmo, em todo o continente. O escritor-diplomata brasileiro, António Olindo, que no início da década de 60 estanciou em alguns países africanos recém-chegados à independência, registava esse entusiasmo no seu livro publicado em 1964, em primeira edição, Brasileiros na África: "Nos meus primeiros tempos de África, em Dacar, Freetown, Acrá, Porto Novo (Daomé) e Lagos, os jovens negros de Abidjã, lendo sob os postes, eram o signo de uma verdade nova no mundo, de um modo diferente de fazer democracia e buscar o socialismo, de formas ainda não muito conhecidas de reestruturar as bases da administraçao pública, no esforço de "africanização" que, em maior ou menor grau, ocorre em qualquer parte do continente negro. Que as Áfricas são muitas, mas todas caminham para uma unidade." Conhecemos a segunda edição do livro, de 1980, em que, logo a seguir, António Olinto aduz: "Muitas são as Áfricas. E foi justamente a insistência nas diferenças, com o esquecimento das semelhanças, que levou os estadistas de hoje a uma total incompreensão da nova África." A asserção tanto servia a europeus como a africanos, quer se aplicasse a chancelarias do Ocidente, quer a estadistas como Senghor ou Nierere, que criaram um modelo próprio de "socialismo africano", baseado em alegadas "raízes comunitaristas", que não se confundiam com o "comunismo" europeu - o que logo serviu para marcar diferenças que estigmatizaram Senghor aos olhos dos líderes inspirados no modelo unitário soviético para fazerem o seu ajustamento a África. Se estas diferenças não ameaçavam a "unidade institucional" da África, foram, contudo, suficientes para obliterar o que em favor dela poderia ser obtido pelas semelhanças, enquanto realidades etnoculturais, já que o grau de riqueza natural e de desenvolvimento tecnológico dos diversos países acabaria por enfraquecer a "voz igual", bifurcar o caminho da unidade almejada e, não raro, fazer os mais pobres e inábeis retroceder até à orla do caos, representado por uma pobreza que atingia 90% das populações da África negra. Com o desaparecimento da cena política dos grandes líderes carismáticos, cuja personalidade forte e voluntarista, desafiando a "norma" capitalista demo-liberal imposta pelo colonizador, podia, através de um Partido Único, defender que "é o Partido que determina e dirige a acção da nação, a acção das circunscrições, a acção das aldeias, a acção de cada grupo e a acção do conjunto dos grupos" (sustentava Touré); com o termo da Guerra Fria e o relativo distanciamento, por parte das superpotências, das suas "pontas de lança" africanas; com a reaparição, mais ou menos subtil, a coberto de programas de cooperação económica e militar, dos antigos colonizadores que tinham sido preteridos, directamente ou por intermédio dos seus peões, pelos dois pilares da Guerra Fria,- Estados Unidos e União Soviética - África voltou a ser aquilo que os europeus pensavam e queriam que fosse: espaço permeável às influências capitalistas demo-liberais, com os seus povos enleados nas teias das culturas ancestrais mas sensíveis aos ícones das sociedades da abundância, e os novos líderes, formados no exterior e/ou rendidos aos prazeres do consumismo, competindo, até ao triunfo da "nova ordem" por eles representada, com os últimos abencerragens das lutas anticolonialistas, ou contaminando-os com as benesses e privilégios que, no passado, saídos da exploração das terras e dos povos de África, constituíam os "pecados" da burguesia colonial. António Olinto considera que estes "pecados", geralmente causa e consequência das corrupções desenvolvidas no seio dos Estados, "pareciam uma das piores heranças deixadas pelas antigas administrações coloniais", contra as quais já Nkrumah se tinha empenhado denodadamente, firmado nas vantagens do Partido Único para, com a sua autoridade indiscutível, fazer prevalecer um sentido unitário do Estado-Nação sobre a amálgama das etnias e dos egoismos "familistas" que esta significava. O Partido Único, defendido por radicais como Sékou Touré e moderados como Julius Nierere, seria, no fundo, a representação moderna do "monarquismo" tradicional africano, capaz de impor uma "consciência nacional" aos regionalismos das populações fraccionadas, dentro de fronteiras artificiais, pela administração colonial. Afinal, tratava-se de converter em "ampla consciência nacional" o estado de coexistência a que o colonizador levara, compulsivamente é certo, as diversas "nacionalidades" submetidas. A prática da autoridade centralizada na figura de um chefe carismático foi, de resto, comum aos diversos países, independentemente do tipo de estrutura política e administrativa e da formação ideológica dos seus líderes, todos apoiados em regimes "musculados", fossem eles Ben Bela na Argélia, Khadafi na Líbia, Houphouet-Boigny na Costa do Marfim ou Lepold Senghor no Senegal. Observava António Olinto, na época: "Ainda é cedo para se julgar da validade da tese do partido único nas actuais versões africanas. Uma condenação apressada do modo como esses líderes vêm tentando colocar seus países no ritmo da vida de hoje pode acabar sendo um preconceito do nosso liberalismo, desenvolvido ao longo deséculos de pesquisas e aprendizados de como lidar com a coisa pública sem que o indivíduo seja diminuído em sua liberdade." Hoje, Olinto diria, decerto, que a África se começou a esfacelar, política e economicamente, com o desaparecimento dos líderes históricos que conquistaram a independência e com a substituição do seu discurso revolucionário-messiânico de "reafricanização" dos povos desalojados do "continuum" ancestral por um discurso alógeno que era - esta incontestavelmente - "herança" do colonizador e que se revelaria, no terreno africano, como um "presente envenenado": o discurso da democracia à europeia como meio de conquistar o Poder - o que, por motivos óbvios, ninguém ousa questionar, como "verdade revelada" que serve a todos os interesses... Leonel Cosme escritor, investigador
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