Como quem mergulha no seu "museu no sótão, no virar dos setenta anos e depois de uma carreira jornalística e literária digna de registo, feita tantas vezes no meio de certa humildade ou no propósito de quem nunca quis andar na crista das ondas, Arsénio Mota tem surgido nos escaparates com grande regularidade nos últimos anos. Não apenas no prosseguimento de uma dedicação extrema pela literatura infanto-juvenil (e neste domínio essa sua criação tem sido pendular de qualidade, em especial nos títulos incluídos na colecção "O Tapete Voador"), mas sobretudo no domínio do conto e da crónica, para chegar agora a vez de retirar das gavetas os textos ensaísticos que fazem parte destas Inclinações Pontuais que acaba de publicar. Trata-se, sobretudo, de estudos e textos que as circunstâncias do percurso literário de Arsénio Mota pôde conhecer em mais de trinta anos, ou seja, entre um texto evocativo de Raul Brandão no centenário do seu próprio nascimento (1967) e o de uma palestra evocativa de Rodrigues Lapa e a Galiza, proferida na Sociedade de Língua Portuguesa em 1997. Mas pelo meio destes textos que se revelam dos mais marcantes deste novo livro, Arsénio Mota não deixa, em todos os momentos, de fazer o "elogio" da Literatura numa época de tantos obstáculos ou profecias quanto à sua extinção superadas, dizem alguns agoiros, pelas novas tecnologias da informação. Conversas! Porque o livro, todos os livros, continuarão a existir, com o suporte do papel e o gosto pelo seu manuseamento táctil, sobretudo quando, como o autor de Inclinações Pontuais, se defende o bom gosto literário "com a força de quem ama a Literatura por fatalidade ou, no mínimo, com a convicção de quem protege e agasalha uma águia ferida a tiro e perseguida por predadores". E, nesta forma entusiástica de ainda dar vivas à Literatura, Arsénio Mota não deixa de reclamar, e com razão, "para as novas gerações uma educação literária digna deste nome e como pessoas de palavras, considerar a palavra estética o elemento verdadeiramente indispensável a toda a comunicação verbal não utilitária". Em tempos, sabemos que Werner Krauss afirmou que «nenhuma obra literária surge de geração espontânea, mas sempre como mensagem para um determinado círculo de pessoas», que são os leitores, naturalmente, e assim o escritor, seja ele poeta, prosador ou ensaísta, pode comunicar não só pelos livros que publica, mas sobretudo através do diálogo que estabelece ou através dessa corrente ser sempre visível o que se diz, se escreve, se afirma. Ora, aos setenta anos, repetimos, tendo feito um pouco de tudo e sabendo o que lhe resta fazer ou publicar, Arsénio Mota ainda se interroga, ao longo dos textos destas Inclinações Pontuais, para que serve a literatura e o que ela representa na formação de um homem, numa forma de apelo ao leitor que sabe ler para lá do que aparentemente está escrito, que sabe olhar o "espaço invisível" onde o visível se vê, se sente, se grita e nos comove até ao sangue. A função da literatura é, de facto, ser actuante e legível, no verdadeiro e profundo sentido, talvez mesmo em todos os sentidos. O nível de actuação ou de influência (seja ela política, filosófica, moral, estética, ideológica) está precisamente no modo como cada leitor sabe ler e aderir ao que o escritor lhe transmite, lhe oferece sem artifícios, a não ser os da sua própria arte. O espaço literário é, pois, aberto, total e absolutamente povoado: as visões e sonhos de todos nós, através da criação literária (e artística) transformam-se em valores que podem por vezes fazer "mudar a vida", na divisa de Rimbaud. Assim, na forma de crítica e lucidamente a reabilitar e elogiar, Arsénio Mota redescobre esse sentido de a Literatura ser ainda a tábua de salvação de muitos desastres que, neste tempo de nets e internets, se afirma como uma superior forma de diálogo e de comunicação com toda a gente. E é isso mesmo que está presente nos propósitos literários dos textos que agora reúne neste livro (Romain Rolland, Tolstoi, Ferreira de Castro, António Feliciano de Castilho, António de Cértima e ainda sobre problemas relacionados de perto com a poesia, a língua portuguesa e a comunicação), não só com a intenção das suas opções estéticas e literárias, mas acima de tudo com o desejo firme de assim mesmo "explicar melhor a sua circunstância" como jornalista e de escritor que conta na sua bibliografia activa alguns títulos de uma qualidade sempre muito regular e coerente. Serafim Ferreira Crítico literário Arsénio Mota INCLINAÇÕES PONTUAIS Ed. Campo das Letras / Porto, 2000.
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