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A Falácia da Co-Incineração

A solução da poluição em Portugal, como em todo o planeta em geral, exige medidas de fundo. É preciso criar um modo de produção que acabe com o "lixo", isto é, o próprio "lixo" tornar-se-á, todo ele, recurso ou bem natural novamente disponível.
A noção de reciclagem é de resto a regeneração que transforma os detritos momentâneos em bens renovados e reutilizáveis. É este o grande "milagre" negentrópico que teremos de generalizar no futuro processo civilizacional.
O antigo processo civilizacional urbano-industrial, que a humanidade construiu sobretudo a partir do séc. XIX, tem a ver com uma cosmovisão maquinista do mundo e uma lógica linear que preside a esse ponto de vista.
No final do séc. XX, a cosmovisão foi-se alterando. O esgotamento dos bens naturais e das energias fósseis, o uso de materiais não recicláveis e tóxicos, revelou o carácter auto-destrutivo deste paradigma.
Uma nova cosmovisão eco-sistémica e uma eco-técnica, permitem encontrar fundamentos alternativos para este "modelo" esgotável, esgotante e esgotado.
Reduzir os resíduos, reutilizar objectos produzidos, reciclar e utilizar energias renováveis, possibilitam repensar o processo produtivo e encarar um desenvolvimento ecologicamente sustentado e valorizando a associação e a cooperação entre produtores, consumidores e decompositores da biocenose.
A comissão científica em que o governo se apoia, não fez uma investigação sistémica nem abordou a questão da complexidade entre as relações do desenvolvimento da técnica e da sociedade.
Confessou não ter suficientes dados. Abordou de uma forma analítica a questão das técnicas de queima de resíduos, sem uma visão mais ampla e que assentasse sobre uma óptica preventiva.
De resto, para uma abordagem complexa e sistémica, teria que se proceder à recolha de informação que ainda não existe e teria que se alargar a problemática do ambiente a uma vasta rede de implicações, o que levaria à organização de múltiplas equipas transdisciplinares que, aliás, já deveriam estar a trabalhar em todo o território.
É claro que o sr. Ministro tem dito que é preciso agir..., agir..., agir!...
Mas não pode escudar-se então em estudos tão analíticos e parcelares duma comissão reduzida e redutora por falta de dados e abrangência de problemáticas, legitimando tecno-idolatricamente a decisão política, como se a política fosse mero instrumento técnico.
Se o Ministro Sócrates e o governo, quisessem verdadeiramente agir e em matéria de que não ressaltam já dúvidas na comunidade científica nem nas populações, iria agir no essencial, resolvendo os problemas de fundo:

  • substituir as fontes de energia fóssil por energias renováveis;
  • organizar a reciclagem de águas usadas, em todo o território;
  • regenerar os cursos de água poluídos;
  • proceder à arborização em função da biodiversidade, do bioclima e das necessidades para um desenvolvimento ecologicamente sustentável;
  • implementar transportes públicos não poluentes;
  • minimizar, indo mesmo até à eliminação total, todos os resíduos tóxicos;
  • promover os processos de reciclagem de todos os lixos. E, nos resíduos perigosos, adoptar ainda medidas de reciclagem cada vez mais controladas, susceptíveis de reciclar, por exemplo, os solventes e os óleos, como revelam as experiências já existentes na Europa .

Apesar de tudo, admitindo que ficariam, eventualmente, por resolver outros resíduos perigosos (percentagem já muito reduzida em relação aos restantes lixos), só então, no final de linha de todo este processo de reciclagem e reutilização, se colocaria o destino desses eventuais resíduos tóxicos.
O governo quer começar pelo fim, como se a solução da poluição dependesse da co-incineração. É a lógica da maquilhagem, da panaceia, para fingir que se muda, continuando tudo na mesma e servindo interesses privados em detrimento de interesses públicos.
Se o governo estivesse bem intencionado, como diz que está, e admitindo (o que é discutível) que a co-incineração fosse a única alternativa possível para a comissão científica independente, então, mesmo nesse caso, a co-incineração seria utilizada como um mal menor "in extremis", num prazo restrito e apenas em função dos lixos tóxicos acumulados no passado, sem se permitirem futuras emissões tóxicas. Haveria ainda a opção de armazenar até se conseguirem novos processos de reciclagem ou reutilização, que todos os dias estão surgindo, como mostram inúmeras novas empresas para o tratamento de resíduos tóxicos.
O que é claro é que este governo, sem um plano estrutural e medidas práticas de fundo para prevenir os meios que determinam os lixos tóxicos e, ao "apostar" na co-incineração, do modo como o faz, incentiva a continuação de produção de resíduos tóxicos: podem continuar a "lixar" o ambiente pois o governo arranjou um processo alargado de "limpar". Eis o que se revela, em substância, com este tipo de apostas em que lixo e negócio andam de mãos dadas.
É que o governo, nos lixos como na habitação, na sociedade como no território, mais não faz do que estar ao serviço da globalização, geo-estratégia das grandes multinacionais, sem querer responder aos interesses públicos, planetários.
O programa polis é outra panaceia fachadista para enfatizar o valor de troca em relação às necessidades públicas, nesta economia neo-liberal em que se pretende transformar o mundo numa mega empresa para enriquecer meia dúzia de "big brother?s" accionistas deste funesto desígnio de exploração e devastação do planeta.
Se a aposta do governo fosse verdadeiramente empenhada no desenvolvimento ecologicamente sustentado, eram eco-polis que o governo deveria promover.
Por isso, o governo não dá passos sólidos e importantes na prevenção. O frenesim do sr. Ministro parece estar todo orientado para o negócio dos lixos e da co-incineração, sem querer resolver os problemas de prevenção.
O filósofo português Pedro Hispano (séc. XIII), definiu falácia como uma forma de "fazer crer que é, aquilo que não é, mediante alguma visão fictícia, sem consistência real".
Concluindo:
A falácia do Ministro Sócrates, ao querer insistir na co-incineração, oculta a verdadeira solução do problema, que consiste em, preventivamente, evitar o uso da própria co-incineração, por esta não ser solução.
Faz-me lembrar uma história, talvez portuguesa, turca ou chinesa. Já não me lembro.
Um vendedor estava muito interessado em vender um par de botas. Mas estas eram pequenas e não serviam nos pés do comprador. A ganância era tanta que o vendedor tentou convencer o cliente a deixar-lhe cortar um bocado do pé para lhe calçar a bota... Diz-nos esta história-ensino que quando o vendedor se preparava para lhe cortar o pé, recebeu um valente pontapé!...

Jacinto Rodrigues
Faculdade de Arquitectura / Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Jacinto Rodrigues
Fac. de Arquitectura da Univ. do Porto
Jacinto Rodrigues
Fac. de Arquitectura da Univ. do Porto

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