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Crónica de uma greve escolar...

João estava banzado. Parecia as Antas em dia de jogo. Chegou a ver cachecóis dos Super-Dragões, mas o alvo daquela malta não era nem os "lampiões" nem o Vale e Azevedo. Chamava-se Guilherme de Oliveira Martins, o Ministro da Educação.
Nessa manhã, João chegara a tempo de ter assistido ainda à tentativa de colocar correntes no portão da escola. Não o fizeram. Não porque não o desejassem, mas porque a professora Dores, a presidente do "Directivo", convencera-os calmamente que não o fizessem. Mesmo assim, tinham sido poucos os que se decidiram entrar. Uns porque eram os merdosos de sempre e outros porque tinham testes marcado para esse dia que os profes não tinham adiado. A malta aguentara firme cá fora. A falar, a cantar, a mandar bocas contra as aulas de 90 minutos e a ouvir discursos a favor da greve. Os professores, entretanto iam chegando. Alguns ainda pareceram querer estacionar os carros fora do portão, para logo a seguir se arrependerem e os guardarem lá dentro. Outros estacionaram-nos logo no pátio da entrada. A única que deixou o Punto onde sempre o deixava foi a stôra Helena. É bem fixe esta mulher. Por isso é que lhe deixamos um bilhete no pára-brisas a dizer-lhe isso.
Sara, por seu turno, nunca tinha estado numa coisa assim. Viera para o Porto convencida pelos colegas da turma, mas sentia-se bastante inquieta. O que lhe diria a mãe ? Mesmo assim arriscara vir. Os amigos chatearam-na tanto que ela não lhes conseguiu dizer que não. Até porque queria fazer greve. Tinha era medo do pai. Mas nunca tinha visto tanta gente junta. Chegavam de todos os lados com cartazes, a dançar, a berrar, a falar ao mesmo tempo. Parecia mais um concerto que outra coisa qualquer. Então miúda, valeu ou não valeu a pena teres vindo ?
Sem saber como, entregaram-lhe uma faixa para as mãos. Queremos Educação Sexual, já ! estava escrito no pano. Segura aqui meu, disseram-lhe, e ele, logo ele, não se fez rogado. Só sabia que iam chatear o Director Regional. À medida que avançavam pelo meio da rua, os carros eram obrigados a parar. E havia de tudo nos passeios. Velhinhas que lhes sorriam ou homens e mulheres que os mandavam trabalhar. Chegou mesmo a ouvir uma senhora dizer que estava admirada por ver a queima das fitas passar, nesse ano, na Rua do Heroísmo. A certa altura, vá lá saber-se porquê, tiveram que parar. Enquanto cantavam, reparou, entretanto, que dois velhotes olhavam para ele com um sorriso trocista. Decidiu não ligar, porque com a faixa que levava nas mãos depressa se tinha habituado ao gozo dos transeuntes. Não estava era à espera de ouvir o que um dos velhos, para ter graça, dissera em voz alta e bem audível:
- Ó Zé, já viste esta ? Agora, para se aprender a dar uma queca, é preciso ir às aulas.
À noite, Paula contava à mesa as peripécias do dia.
- Foi bestial, mãe.
- Eu vi na televisão. De facto era muita gente. Só não gostei de alguns cartazes. Não se pode chamar aquilo a ninguém. Perde-se logo a razão.
- Chegaste a ver um que dizia aulas de noventa minutos, acha bem senhor ministro ? "Acha" estava escrito com um x, vê lá tu. Como é possível que alunos do Secundário dêem erros assim ?
Paula sorriu para o pai. Como é que lhe poderia explicar que aquele x, pintado propositadamente com outra cor, não era um erro, mas uma provocação, a marca que alguns bandos utilizavam, sempre que podiam, para se distinguirem de todos aqueles que não pertenciam ao seu grupo ?
A greve dos alunos foi o tema das conversas na sala dos professores. Uma farra. Faz-lhes bem. A minha telefonou-me a pedir autorização para ir para a Baixa.
- Mas afinal, o que é que eles querem ?
- São contra a reforma.
- Isso também eu sou.
- Para mim ele não querem nada. Sabem lá o que é que querem. Dois faltaram-me ao teste. Julgam que lhes vou perdoar ? Isso é que era bom.
Judite sorriu de forma quase cúmplice para o Pedro. Via os colegas preocupados com as reivindicações dos jovens, sem perceberem que os alunos tinham sido capazes de vir para a rua dizer que não só estavam fartos de belíssimos discursos, como de uma escola que era imune ao conjunto das excelentes intenções que esses mesmos discursos apregoavam. Havia muito de folclórico na manifestação dos jovens ? Certamente. Mas não foi o Barthes que escreveu que qualquer ruptura mais ampla do quotidiano implica a festa ?
- Estás muito calada, Judite ?
Sorriu ao que ela sabia ser uma provocação da Ana Luísa e nada disse.
Helena encontrava-se parada num engarrafamento da Via de Cintura Interna. No pára e arranca daquele fim de tarde, ouvia o noticiário da Antena 1. O tema era a greve estudantil. Passava-se uma reportagem de rua, feita de perguntas óbvias e das respostas, bastantes díspares, dos jovens grevistas. De repente, e sem saber explicar porquê, veio-
-lhe à memória o trabalho de grupo que mandara os seus alunos fazer nas férias do Natal. Uma escola imaginária, era o tema que um dos textos não respeitou. Lembrava-se como ficara surpreendida por haver alunos para quem a escola era um contexto tão insuportável que não a conseguiam imaginar de forma diferente. A greve do dia anterior apenas dava corpo a esta ideia. Havia ingenuidade e niilismo a mais nessa greve ? Talvez houvesse. Dissera-o de tarde no bar da escola, quando alguém lhe perguntou se concordava com os palavrões, a bandalheira e a confusão que, pelos vistos, fora a única coisa que conseguira ver nas diversas reportagens televisivas. Dissera também que não competia àqueles jovens definir alternativas para o actual Ensino Secundário. Limitavam-se a dizer que o que andavam a fazer na escola não tinha sentido, e depois ? Eram os únicos ? Quem lesse os jornais, quem assistisse aos debates televisivos, quem ouvisse o que muitos pais, e até alguns professores, diziam, não se podia admirar por aí além que eles também o dissessem. Deveriam ser capazes de dizer mais alguma coisa ? Porquê ? Se o conseguissem, fariam o que professores, investigadores, pensadores, técnicos superiores, secretários de Estado e Ministros da Educação até hoje não tinham conseguido fazer, encontrar soluções para o mal estar e a inquietação que se sentiam e pressentiam quotidianamente nas escolas.
Saíra do bar acusada de excesso de romantismo e de defender uma escola secundária que não tinha nem quaisquer condições para existir nem para ser socialmente útil. Como já se começara a habituar a esta e a outras acusações não lhes respondeu. Achava que já não valia a pena. Teria de lhes explicar que, muitas vezes, nem o êxito que sentiam face às classificações dos seus bons alunos lhes poderia ser atribuído. Tinha mais a ver com o trabalho dos explicadores que com eles próprios. A excelência académica que tanto valorizavam era, afinal, um processo que também ele lhes escapava. Teria de lhes perguntar quantos livros é que os seus alunos tinham consultado para estudar e aprender a matéria que deveriam debitar nos testes que os avaliavam. Teria de lhes perguntar se sabiam quantos rapazes e raparigas é que tomavam calmantes para aguentar o inferno de uma vida que passou a ser definida em função da nota necessária à entrada no curso de Medicina ou de Arquitectura. Teria de lhes perguntar, também, como é que se sentiriam no papel de alguém em quem ninguém acredita, nem tão pouco faz por acreditar. Para ela, o problema não estava no facto da escola poder ser também um espaço de sofrimento. Para ela o problema só começava a sê-lo quando esse sofrimento se tornava gratuito e inútil e os alunos do Secundário, com aquela greve, apenas tinham gritado que não.

Ariana Cosme e Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação/ Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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